Garcia da Orta e a medicina de manipulação

Dentre as numerosas figuras da História Judaica, o médico judeu-português Garcia da Orta ocupa um lugar de destaque. Avançado no tempo, dedicou sua vida à medicina experimental, hoje denominada de manipulação. As várias edições, traduções e adaptações dos “Colóquios dos Simples e Drogas” representam uma das maiores contribuições da terra de Camões para o espírito científico do Renascimento.

Garcia da Orta (1501-1580) foi um dos mais destacados investigadores das ciências médicas no auge da expansão ultramarina portuguesa. Para entender o contexto histórico é preciso dizer que a “matéria médica” do século 16, quase não se diferenciava do saber e das práticas medievais. A medicina como disciplina voltada para as doenças e práticas terapêuticas, tinha recuado do milenar conhecimento legado pelas culturas greco-romana e árabe.

Durante mais de 1.000 anos o ensino da medicina esteve em mãos da escolástica (Padres da Igreja), com raras e esporádicas influências de mentes inquisitivas existentes nas escolas da Europa tais como Bolonha, Pádua, Montpellier, Paris, Oxford, Salamanca e Alcalá de Henares.

A prática médica era influenciada consideravelmente pelo dogmatismo, a superstição e a astrologia. O diagnóstico era bastante limitado e se resumia apenas à observação da urina. A terapêutica corrente baseava-se em purgação e sangria. O conhecimento da anatomia e da fisiologia era fragmentário, principalmente pelo fato que a Igreja proibia terminantemente a dissecação de cadáveres humanos.

Princípios básicos de higiene pessoal e social foram desaparecendo dos hábitos cotidianos de gregos, romanos e árabes, sempre tão cuidadosos em banhos públicos e tratamentos do corpo, com latrinas e sistemas de esgotos.

Incidentalmente, a pregação religiosa prevalecente afirmava que não existia nenhuma razão válida para que um cristão se banhasse para além do baptismo.

A época de Garcia da Orta

Garcia da Orta nasceu em 1501 em Castelo de Vide. Seus pais era Fernando (Isaac) da Orta e Leonor Gomes, ambos espanhóis, exilados em terras lusitanas quando os “Reis Católicos” expulsaram os judeus do território. Em Portugal, como consequência do “Édito” do rei D. Manuel I, tornaram-se católicos e engrossaram o grupo dos “cristãos novos”. De qualquer modo, Orta era nativo do Alentejo com uma personalidade que reflete traços característicos daquela região: “Um fino cepticismo, temperado por bom humor, criticismo pachorrento, mas gracioso, contudo sarcástico”.

Sabe-se que após encerrar seus estudos básicos, Garcia da Orta foi a Espanha estudar medicina na Universidade de Salamanca. Na época Salamanca era um dos mais conceituados centros de estudos médicos da Europa. Era denominada a “Nova Atenas”, com mais de 7.000 alunos. Esta Universidade era protegida pela rainha Isabel, ela mesma ansiosa por aprender e se instruir. A influência de rainha foi determinante para que mulheres pudessem estudar e ensinar em Salamanca e Alcalá de Henares, abertura que rapidamente se perdeu nos anos subsequentes.

Não existem documentos testemunhando se Garcia da Orta recebeu seu diploma de médico em Salamanca ou Alcalá. A Universidade de Alcalá de Henares destacou-se alguns anos antes, devido às ações de um homem: Francisco Jimenez de Cisneros (1436-1517), estudante pobre de Alcalá e depois em Salamanca, centros acadêmicos em que trabalhou para subsistir.

Sabemos que Garcia da Orta recebeu o grau de “licenciado”. Se ele não procurou o grau mais elevado de “doutor”, não foi certamente por falta de capacidade intelectual, mas sim por escassez de meios. De fato, sabemos que aos “doutores” lhes era imposta uma enorme carga financeira. O doutorando devia suportar as cerimônias, a construção e ornamentação da plataforma para o exame, um cortejo a cavalo de todos os acadêmicos através das principais ruas da cidade, um tour feito com bandeiras, trombetas e tambores; tudo com “vitualhas” para aplacar o apetite mais exigente. Este tipo de despesas não podia ser suportado pelos escassos recursos de Orta. Mesmo para obter o primeiro grau nada era gratuito. O estudante devia oferecer a cada um dos examinadores duas moedas de ouro, uma tocha cerimonial, uma caixa de diacitron (doce feito com cidras), 1kg de doces surtidos e 3 galinhas.

Como o exame era previsível durar até a noite, o estudante tinha ainda de propiciar uma ceia onde haveria um frango ou uma perdiz, duas pombas para cada um dos hóspedes, uma tigela de manjar branco, duas frutas para cada um, além de pão e vinho para todos. Este era o cardápio regulamentar que, por tradição, era generosamente excedido. O judeu Garcia da Orta retornou a Portugal provavelmente em 1525 para exercer a medicina em Castelo de Vide.

A vida de Garcia da Orta

Devido a proibições existentes para movimentar-se de mula ou jumento, Garcia da Orta pediu às autoridades uma permissão especial para poder movimentar-se no exercício de sua profissão. Há um documento, datado de abril de 1526, dando-lhe autorização para fazê-lo.

Existe outro documento histórico que testemunha a sua capacidade como médico. Desde os tempos do rei João I que qualquer pessoa, (homem ou mulher, cristão, judeu ou mouro), que pretendesse exercer medicina, devia previamente ser submetido a um exame pelo Médico Real. Garcia da Orta foi para Lisboa para submeter-se ao exame com Diogo Lopes, “Cavaleiro da Ordem de Cristo” e “Médico Real”, naquela época. Pode-se imaginar que, acabado de retornar da famosa Escola de Salamanca, fácil lhe foi conseguir permissão para exercer a prática médica, e esta lhe foi oficialmente outorgada em documento datado em abril 1526.

Mais tarde, Garcia da Orta deslocou-se para Lisboa, talvez por começarem os cristãos novos a serem incomodados em Castelo de Vide. Aí encontrou o conhecido e poderoso nobre Martin Afonso de Sousa. Orta consegue ser nomeado para leccionar na Universidade, certamente por influência daquele nobre, porque quando peticionário pela primeira vez foi rejeitado, provavelmente devido à sua mácula de “cristão novo”.

Martin Afonso de Sousa era um aristocrata de alta linhagem e tutor do duque de Bragança.  Parentes de Garcia da Orta, inclusive até mesmo seus pais, serviram essa poderosa família nobre dos de Sousa. Martin Afonso de Sousa estava a serviço do rei D. João III e tinha tanta influência sobre ele que o pai do Príncipe, D. Manuel I, exilou-o da corte.

Martin Afonso de Sousa retirou-se para Espanha e viveu em Salamanca onde reencontrou seu conhecido de infância, Garcia da Orta. No entanto, sua afiliação à Universidade de Lisboa não foi por muito tempo, por haver partido para Gôa no ano de 1534. Pode-se imaginar que o ambiente social para os “cristãos-novos” não era nada agradável, ainda que o “Édito de Muge” decretado pelo rei Manuel I, (obrigando os judeus ao batismo), prometesse que eles iriam gozar de cinquenta anos de paz.

Paralelamente, na Espanha, fogueiras ardiam dia e noite pelo país, queimando aqueles que eram condenados pela Inquisição. A situação em Portugal agravou-se durante o reinado de D. João III, quem introduziu a Inquisição em maio de 1536, instituição aceita pelos bispos portugueses, adeptos aos princípios da Contra- Reforma.

De qualquer modo, em 12 de março de 1534, Garcia da Orta e sua família partiram para Goa na tripulação de Martin Afonso de Sousa, funcionário real investido no cargo de “Capitão-Mor dos Mares da Índia” e, mais tarde, no cargo de “Vice- Rei das Índias”.

Em vários lugares de sua obra “Colóquios”, Garcia Orta registra sua afiliação à Casa de Martin Afonso de Sousa, que repetidamente diz servir. Isto deve ter sido de grande valia para o médico percorrer a sociedade da Goa portuguesa do século 16.

De fato, Garcia da Orta, além das suas atividades como médico, tornou-se um comerciante de pedras preciosas e tinha plantações de especiarias, produtos muito procurados e valiosos naquele tempo. Ele enriqueceu chegando inclusive a possuir uma ilha própria em Bombaim, ilha que estudiosos identificam como a “ilha do amor”, descrita nos versos de “Os Lusíadas” de Luís Vaz de Camões.

Existem ainda documentos testemunhando que Garcia da Orta e Camões eram amigos próximos. Condenado pela justiça, o poeta foi exilado para Gôa, e o fato de Garcia da Orta estabelecer amizade com ele aponta para seu perfil intelectual e seu cordial caráter.

Alguns anos atrás foram encontrados registos indicando que o médico Garcia da Orta era casado, ao contrário do se pensou durante muito tempo. Esta descoberta resultou do estudo dos registros da Inquisição, basicamente o processo judicial contra a irmã de Garcia da Orta, Catharina da Orta, um dossiê com cerca de 140 páginas.

Os historiadores sabem que tais registros só podem ser parcialmente confiáveis porque, sob as mais terríveis torturas, os condenados diziam tudo o que os inquisidores queriam escutar. Há casos de infelizes mulheres que chegaram a admitir terem mantido relações sexuais com o próprio diabo. No entanto, datas, locais e nomes encontrados nesses documentos podem ser considerados de forte credibilidade.

Garcia da Orta casou-se com uma familiar sua, Brianda de Solis; mulher natural do Alentejo. Ela foi para Gôa com o seu pai, o escrivão do navio Santiago, o mesmo que levou também um monge missionário que se tornaria São Francisco Xavier (1506-1552), mais conhecido como o “Apóstolo do Oriente”.

Durante os interrogatórios diante a Inquisição, Catharina da Orta denunciou vários parentes e conhecidos. Ela retratou todas as suas culpas quando foi levada para a fogueira. Por outro lado, Brianda Solis e suas filhas escaparam das garras da Inquisição, talvez rumo à Amsterdã, justo a tempo de salvar suas vidas.

A obra “Colóquios”

No auge de sua agitada vida Garcia da Orta escreveu o famoso livro “Colóquios Dos Simples e Drogas e Coisas Medicinais da Índia”. Goa era a capital do Império Português na Índia e um lugar de grande diversidade cultural e étnica. Como médico Garcia da Orta teve contatos com colegas árabes ou “hakumas”, e também com médicos hindus ou “vydias”.

Na Índia havia doenças que Orta viu pela primeira vez, observando com atenção como eram tratadas. A grande variedade de plantas medicinais, secreções de animais e minerais usados na terapêutica foi um vasto campo que ele estudou com extremo cuidado. Seguiu expedições militares que atingiram lugares distantes, incluindo o Ceilão, atual Sri Lanka.

Garcia da Orta é fruto da expansão e exploração portuguesas. Ele mesmo afirma isso claramente: “… agora nós aprendemos mais em um dia pelo português do que o que foi conhecido durante cem anos com os romanos”. Na verdade, era um observador perspicaz e uma mente profundamente inquisitiva. Durante 30 anos estudou e compilou observações estabelecendo correlações, construindo um corpo de pensamentos científicos e de ideias personalizadas. O momento era propício para a escrita.

O seu livro “Colóquios” foi organizado sob a forma de diálogos, algo comum nesses tempos. Para poder dialogar, criou o imaginário Dr. Ruano, um médico espanhol que teria vindo de Lisboa para Gôa. Os debates apresentados na obra representam duas visões opostas do mundo científico. A rigor, há dois personagens presentes em Garcia da Orta: um é o homem das escolas, cujo saber está consolidado a partir dos livros venerados; o outro é o homem curioso que baseia o seu conhecimento na observação, na experimentação e no pensamento independente. Este último é o eterno viajante e observador, que confrontado com os livros antigos simplesmente diz – eu vi.

Nos diálogos o Dr. Ruano representa o pensamento antigo e Garcia da Orta o conhecimento sustentado em fatos, levando não só a uma nova percepção filosófica do universo, mas também a uma nova forma de construir o conhecimento. Sem hesitação pode dizer-se que a contribuição mais importante para o pensamento humano que decorre dos “Colóquios” é precisamente este novo paradigma de aprender e de construir ciência.

Garcia da Orta foi, sem dúvida, um dos pioneiros do raciocínio moderno. O seu livro está dividido em 59 colóquios cada um lidando com um tópico de matéria medica, apresentado em ordem alfabética, de Aloae para Zerumbet (gengibre silvestre). Há também um aspecto inovador neste importante livro: ele foi escrito em português, em vez do latim científico.

O livro “Colóquios” foi impresso na Índia e publicado em 10 de Abril de 1563, mas, para grande pesar da Orta, estava cheio de erros, possivelmente devido ao fato de ter sido apenas o terceiro livro impresso em Gôa. Uma segunda impressão foi publicada no mesmo ano. O próprio Orta conseguiu do então Vice- Rei a proteção de seus direitos autorais por três anos, a partir de outubro de 1563.

Os “Colóquios” possuem uma riqueza de informações, tanto sobre aspectos botânicos como médicos. Importante dizer que, nesta obra, Garcia da Orta oferece uma primeira indicação do uso de rauwolfia serpentina (raiz de cobra indiana ou pimenta do diabo), espécie de flor da Apocynaceae para tratamento de doenças mentais. Aliás, Orta deu dicas importantes sobre outros tratamentos psíquicos, todos balizados na sua experiência, altamente aceita por médicos posteriores.

A primeira tradução dos “Colóquios” foi feita por Carlos Clusius (1525-1609) e apareceu em Antuérpia em 1567. Já a tradução espanhola remonta a 1572. A tradução latina é reeditada nos anos 1579, 1593, 1601, 1605 e 1610. A tradução italiana surgiu em 1576 e foi repetida em 1582, 1589, 1597 e 1616. A primeira tradução francesa apareceu em 1602.

Ao longo dos “Colóquios” pode-se perceber a sua enorme erudição sobre todos os autores que o precederam. No entanto, esta sua erudição é subordinada aos fatos, porque ele só confia no que vê.

No entanto, o mais interessante são as frases onde Orta afirma o seu pensamento racional. Como exemplo, no colóquio sobre a resina de benzoína pode-se ler: “Não instiles o medo em mim nem com Dioscorides, nem com Galeno, porque eu vou dizer somente a verdade e o que eu sei …”. No colóquio sobre a pimenta, o Dr. Ruano, receoso, grita: “Parece-me que destruís todos os escritores antigos e modernos, mas prestai atenção ao que estais fazendo” e começa gradualmente a recordar as opiniões de Dioscórides, Plinio, Santo Isidoro, Serapio, Mateus Silvatico, Sepúlveda, os monges italianos e todos auqeles que tinham escrito obras de farmácia. Orta, permanecendo calmo, comentou “que apenas estava dizendo o que muito bem conhecia como uma testemunha ocular”.

A mente brilhante de Orta o coloca entre os precursores da ciência moderna, o insere na galeria daqueles que não só estudaram nos livros, mas aprenderam a valorizar o mundo da experimentação e da observação, porém sempre mantendo a mais exigente probidade.

Até hoje, os historiadores não conseguiram esclarecer o fato de ele ser ou não cristão novo com comportamento judaico impecável, como alguns dizem, nem podem comprovar que secretamente seguia a religião de seus antepassados. No julgamento da Inquisição de sua irmã Catarina da Orta há referências ao fato de que sua esposa o teria sepultado com funeral católico, mas com a introdução de alguns ritos judaicos.

A Inquisição na Índia foi bem ativa e se estendeu por dois séculos e meio, até 1812. Somente encerrou por completo suas atividades quando os britânicos invadiram Gôa, na época das guerras napoleônicas. Durante esse longo período, a o Santo Ofício da Inquisição perseguiu cristãos novos, como também as populações locais convertidas ao Catolicismo. Diz-se que 40.000 pessoas morreram pelo fogo e parece que quase todos, pelo simples fato de manter vivas crenças religiosas diferentes, quando não vítimas de denúncias falsas.

Na primeira metade de 1568, Garcia de Orta faleceu de sífilis. Vários familiares seus foram presos. Na sequência do processo que condenou a irmã, Catarina de Orta, em 1569, e por suspeita da prática de “criptojudaísmo”; a Inquisição condenou também, “post mortem” a Garcia de Orta, em dezembro de 1580. Fez exumar os seus ossos da Capela de Santa Catarina de Gôa para serem queimados, e suas cinzas lançadas ao rio Mandovi.

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