Globalização: A barraca do próprio destino

(Artigo originalmente publicado no YOMAN CHINUCH V, No. 19, maio 2003, págs. 4-6).

A. Globalização e habilidades

Provavelmente, em poucos anos, o mundo em que vivemos estará totalmente globalizado. Nosso planeta, então, ficará ainda menor. Mesmo assim, alguns dos modelos de transmissão de informação e conhecimento continuarão navegando sem que ninguém possa prever os rumos a serem seguidos. Esses fluxos ininterruptos testemunharão que, no futuro próximo não mais haverá limites para tomar contato com o saber humano. Tampouco podemos prever, nos dias de hoje, se este processo de globalização será reversível, segundo opinam pensadores europeus. Seja como for, não há forma de profetizar as sinuosas curvas deste novo fenômeno de integração cosmopolita.

Todos aqueles que prognosticam o domínio do mouse sobre o homem, com o intuito de obter melhores cidadãos, mais informados, cultos e universais, estavam totalmente enganados. A destreza e a velocidade aplicadas para penetrar nos depósitos do conhecimento, tampouco conseguiram inserir melhores profissionais no mercado, e nem sequer aprimorar benefícios salariais. Por um lado, não basta a transmissão de tradições desconexas de avós ou a saborosa gastronomia milenar, sem uma pitada de continuidade. Por outra parte, um grande erro dos profetas desses novos tempos foi pensar que “aquilo que o lar não consegue dar, a rua dará”. Mera ilusão!!

Acredito que a condição essencial para poder ser sucedido em um mundo ilimitado, encontra-se na profundidade e na força das próprias convicções. Mesmo quando se é judeu…, aliás, essencialmente quando se é judeu.

Um prédio de fundamentos pouco sólidos ruirá no primeiro tremor, ainda que este registre o mínimo valor na oscilante escala Richter. Um prédio mal construído inundar-se-á também nos dias de chuva e voará pelos ares ao som do primeiro vento.

Aqueles que costumam acampar sabem perfeitamente que, quando é anunciada tormenta, há necessidade de estender a lona (vinil) da barraca, fixar fortemente as estacas e garantir que os ventos não penetrem o improvisado recinto. Somente desta forma a barraca resistirá. E depois a tempestade passará e poder-se-á gozar de um novo dia.

No entanto, se sairmos ao campo sem as habilidades para montar o projeto e aproveitar o espaço, nada de positivo obteremos; mesmo que tenhamos a melhor das intenções. Além disso, acampar com ventilador ou ar condicionado conectado a baterias do carro não faz o menor sentido.

Na existência humana não há panelas milagrosas que permitam cozinhar velhos manjares, sem quem toque música sem registrar as notas nos pentagramas (mesmo tocando de ouvido), nem quem recite poesias em idiomas desconhecidos. Deixemos de acreditar na força do milagre em que crianças e jovens possam receber, por osmose, vivências e lições de vida, a partir do que não lhes ensinamos. Eles não poderão alimentar seus neurônios com comida virtual ou encher seus pulmões com oxigênio seminovo. As células judias poderão crescer e até reproduzir-se normalmente, se as nutrimos com o néctar do conhecimento. Somente assim obteremos sucesso.

Muitos esforços deverão ser feitos para combater os ventos de fora sempre prestes a derrubar elementos da personalidade, alicerces da identidade, fundamentos da própria vida judaica. Naturalmente, trataremos de fechar goteiras, mas afinal estes ventos acabarão se infiltrando.

Assimilação? Perda de valores? Já podemos avaliar os resultados. Pagamos um preço elevado (em quotas fixas) pela nossa teimosia, pela nossa arrogância e pelo nosso esquecimento. O preço aumenta dia-a-dia, os juros também, e em pouco tempo não teremos com que pagar. Não duvide: No que tange a valores judaicos, estamos literalmente “quebrados”!!

O povo judeu caminha rumo à assimilação pelo sepultamento de sua existência. Ele caminha corroído em direção incerta por uma leitura incorreta de seus líderes, pois afinal eles mesmos representam o próprio obscurantismo. Por temor a assumir atitudes consequentes, optamos por trocar uma vida plena e verdadeira pela vivência superficial, a essência pela frivolidade, a educação pela futilidade e o charlatanismo.

Em países da Diáspora a rua deixou de ser judia, a rádio não é judia, a TV não é judia, nem os feriados, nem o idioma, nem os cartazes, nem as cores, nem os odores. Os nomes de rua não lembram a nossa história pessoal. Os conflitos, quando existem, não são nem serão totalizadores. A imprensa e os diferentes meios de comunicação enxergam o judeu a partir de prismas. Não são nem bons nem ruins. Eles simplesmente são!! Algumas vezes são definidos como pessoas cordiais; outras, com mais agressividade, como distintos. Eles renunciam a ser um para dividir-se em dois, usufruindo os mesmos direitos que o resto da sociedade.

B. Abrir portas e fechar buracos

A renúncia à identidade judaica não conduz a lugar nenhum. Ela não dá nenhum direito ou privilégio. Pelo contrário, mutila e castra. Transforma em zero a personalidade adquirida. Deixa em situação ridícula àqueles que usam artimanhas para tentar mudar a cor da pele. Judaísmo não é camisa de futebol, que você põe ou tira quando quer.

É desnecessário abrir janelas para ventilar a casa, quebrando os batentes das portas e logo depois as paredes. Não é nada inteligente abrir janelas para a entrada de fortes odores. O hebraico já diferencia o conceito de porta do conceito de buraco. A porta assinala a possibilidade de abertura, enquanto o buraco indica o desabamento. Para construir uma porta, há necessidade de paredes. Rachaduras não se constroem, elas são frutos de erros de planejamento ou do uso de péssimos materiais.

Deixando esta parábola de lado, é fundamental conhecer os princípios da fé judaica e da vida normativa de nossa tradição bíblico-milenar. O colostro materno não se mantém apenas com leite artificial nem com genes herdados. É indispensável conhecer a nossa Torá, como também a tradição oral com sua exegese. É importante falar o hebraico e compreender os fenômenos históricos para atingir uma identificação total com o renascer do povo na Terra de Israel.

O direito hebraico não está brigado com o napoleônico, da mesma forma que Yehuda Há-Levi ou Yehudá Amichai (falecido em 2000), não excluem a possibilidade de ler a Dante ou Victor Hugo. Diga-se, também, que conhecer a obra do Maimônides não impossibilita ler a Kant, a Platão ou a Descartes. Da mesma forma, estudar o movimento chassídico não será nenhum obstáculo para entender as características artísticas do barroco ou o pensamento iluminista dos filósofos franceses.

Quem não conhece o Sidur, aquele livro de rezas cujas folhas aparecem amassadas pelas lágrimas dos séculos, não poderá acompanhar as orações da comunidade. Poder integrar-se ao coletivo é viável a partir dos tempos da própria oração. Ela mesma recriará o sentimento de pertencer ao “Klal Israel”, à comunidade.

A sabedoria de um povo se desenvolve a partir de extensos processos que se prolongam através dos séculos, sobrevivendo as tentativas de superá-la. O trunfo dos inimigos se obtém com o aniquilamento dessa sabedoria. Somente os suicidas abatem, na sua própria patologia, o prazer da vida. O Judaísmo é vida.

As mensagens dos Profetas bíblicos nunca poderão faltar ao estudar os revolucionários judeus dos séculos 18 e 19. Suas palavras são indispensáveis, muito mais que as frases semiprontas ditas por cortesãos europeus, frases repetidas ad nauseam pelos adolescentes do pensamento moderno. Também servem para todos aqueles que não compartilham a tradição e que, simplesmente, fazem de sua leitura, parte do ritual. Nenhum profeta serviu aos centros do poder nem a governos de turno. Eles (Profetas) jamais se preocuparam em obter altos índices de audiência.

A barraca para acampar deve ser construída com a literatura e o pensamento judaico, além de outros elementos. Todos são minuciosos componentes resistentes à erosão do tempo. Todos são permeáveis e duradouros. Com histórias, com normas, com tradição (como fala Tevie, a personagem de “O violinista no telhado”), com folclore, com alegria e responsabilidade, uma barraca poderá durar até o estabelecimento definitivo do lar.

Na falta de um lar judaico, a criança deverá, desde sua mais tenra idade, adquirir sua formação na escola judaica. A educação judaica, se possível, deverá ser integral. Ela terá que integrar conhecimento com vivência, o moderno com o pós-moderno. Uma escola assim planejada contará com uma programação curricular que desenvolva a pesquisa. Ela motivará os alunos a estudar, ela estimulará os jovens a ter sua própria biblioteca, criará hábitos e comportamentos coerentes, e naturalmente alimentará o amor ao estudo.

Uma escola judaica rica em recursos pedagógicos poderá escolher os melhores docentes, aqueles que demonstrem uma conduta ímpar. Além de integrativa, ela será um paradigma digno de ser imitado. Não haverá nela falsas imagens, adulterações ou enganação.

Lutemos por uma escola judaica autêntica, sem poupar esforços. Uma escola que contribua ao diálogo da chavruta. Que não trema ao exigir dos pais cooperação e participação. Que trabalhe em parceria. Que tenha clareza de objetivos e o perfil do aluno que gostaria de ver uns 20 anos após sua graduação. Que poucos anos depois de concluir seu ciclo letivo, na hora de escolher a escola para seu filho, possa ainda diferenciar nitidamente o sagrado do profano.

Um jovem capacitado para adquirir conhecimento poderá sempre transitar pelos caminhos de seus genitores. Ele adotará várias ideias, e com seu ritmo e melhores ferramentas daquelas obtidas por seus pais, enfrentará o desafio cotidiano.

Não tenho a menor dúvida de que, na hora de montar sua própria barraca, esse jovem poderá construir um solo firme seu lar definitivo. Com as estacas mencionadas há séculos pelo Profeta Isaías, ele ficará amarrado a si mesmo e a seu próprio destino.