Grimoldi – O “Anjo do calçado” durante o Holocausto

Liselotte (Lilo) Leiser de Nesviginsky nasceu em Berlim em 1919 no seio de uma família judaica. Durante a “República de Weimar”, que vigorou na Alemanha entre 1919 e 1933, sua família já era proprietária de uma importante rede de lojas de sapatos. Esta rede levava o nome “Leiser” e contava com 35 estabelecimentos.

Em 1933, enquanto Hitler tomava o poder na Alemanha, outro empresário do ramo de sapatos, Alberto Enrique Grimoldi, visitava algumas lojas no país. Alberto morava na Argentina e havia viajado de Buenos Aires a Berlim para entender melhor o ramo de atividades desenvolvido pela família Leiser. Sem dúvida, era uma ótima oportunidade de aprimorar técnicas de vendas, formas de atendimento ao cliente e tudo relacionado à comercialização do produto.

Liselotte era ainda jovem, mas lembra-se perfeitamente de Alberto Grimoldi sentado num banquinho de madeira, que fregueses utilizavam para experimentar os modelos de calçado. Ele ficava atento à forma em que o cliente era abordado pelo vendedor, o atendimento brindado, perguntando delicadamente sobre o tamanho, a cor e o modelo preferido. Naquele exato momento, conta Liselotte, “ninguém imaginava a importância que teria o senhor Grimoldi”, o empresário de calçados argentino que estava de passagem em Berlim.

Passaram os anos e o Führer (líder do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães), ganhou democraticamente as eleições, assumindo o poder e consolidando um regime autoritário, tendencioso, extremamente perigoso e temido.

Como outras tantas companhias existentes na Alemanha, a rede de calçados “Leiser” foi arianizada. Através deste processo, os proprietários judeus eram obrigados a manter “sócios não judeus” para, gradualmente, passar o negócio às mãos dos arianos.

Em 10 de novembro de 1938 eclodiu na Alemanha do Terceiro Reich a “Kristallnacht” (Noite dos Cristais), atingindo duramente o comércio das principais cidades. As lojas de calçado dos Leiser sofreram ataques que destroçaram por completo suas vitrines. Foi a partir deste divisor de águas, que novos abusos foram cometidos contra a população judaica, dando-se início a prisões e deportações aos campos de trabalho.

Liselotte lembra com tristeza os anos de boicote que antecederam à “Kristallnacht”: “Uns anos antes eu assistia aulas no liceu de senhoritas, mas aos 14 anos fui notificada por uma professora que com sorriso cínico e frio me dizia que, por ser judia, deveria deixar o liceu e procurar outro lugar para estudar”.

Ao tornar-se insustentável a situação, a família Leiser decidiu procurar um lugar mais seguro, partindo de Berlim rumo à Holanda. Liselotte lembra com detalhes o momento do embarque: “Estávamos prestes a deixar o país com um avião da Lufthansa. Na alfandega os SS nos desnudaram por completo para ter certeza que não levávamos joias escondidas no corpo. Assim era a vida naqueles tempos…”.

A família Leiser mantinha ainda uma rede de lojas de calçado em Amsterdã. A rede conhecida com o nome “Huff” não era grande como a alemã, mas igualmente lucrativa e prestigiosa. No novo lar a família não teve sorte. Em 10 de maio de 1940 os Países Baixos foram conquistados por Hitler. Em apenas cinco dias o Wehrmacht se instalou confortavelmente nas ruas de Amsterdã.

Os Leiser estavam prestes a perder tudo na Holanda quando apareceu pela segunda vez o “Anjo do calçado” Alberto Grimoldi, tomando de forma temporária a rede “Huff”. Através de uma operação comercial fictícia, adquiriu esta rede de calçado dos judeus com a promessa de, no final da guerra, retornar o patrimônio recebido na transação. Era um pacto de cavaleiros entre ambas as partes, e tudo estava balizado na base da confiança mútua.

Liselotte tinha 21 anos e não lembra o teor do acordo, mas revela que a promessa de devolver o dinheiro sempre existiu, e realmente assim aconteceu. Encerrada a guerra em 1945 o capital das lojas holandesas foi devolvido. Por várias vezes Lisolette foi perguntada acerca dos motivos pelos quais sua família confiou tanto em Alberto Grimoldi, e sua resposta foi simples: “Meus pais decidiram assumir o risco acreditando na promessa de este homem, isto num mundo que estava ruindo aos poucos. Ele (Grimoldi) despertou confiança e as vezes na vida é necessário acreditar nos valores permanentes da condição humana”.

A vida na Holanda não acabaria com esse contrato comercial fictício. Certo dia pela manhã, Liselotte estava parada na porta de sua casa em Amsterdã. Ainda um pouco adormecida; pois na noite anterior havia saído a dançar com amigos em um bar nas proximidades; percebeu que a Gestapo estava prendendo judeus nas ruas.

Antecipando-se a uma tragédia anunciada e desembolsando uma importante soma de dinheiro, a família Leiser obteve passaportes da Costa Rica. Esses documentos haviam sido emitidos pelo Conde Rautenberg, o cônsul deste país na Holanda. Mesmo sem ter migrado jamais a Costa Rica, Liselotte tem consciência que foram precisamente estes passaportes que salvaram sua família de seguir rumo às câmaras de gás em Auschwitz.

A Gestapo abordou a família que se hospedou em um colégio enorme de Amsterdã. Lá se dormia no chão em condições muito precárias de higiene. Finalmente, os alemães os trasladaram ao campo de concentração de Westerbork, um lugar horrível para prisioneiros em trânsito. Estima-se que entre julho de 1942 até setembro de 1944, tenham passado pelo campo 100.000 judeus holandeses, parte deles judeus alemães trazidos de volta pelo navio Saint Louis.

Liselotte comenta que em Westerbork as pessoas dormiam em barracas destroçadas sendo tratadas pior que animais. De um lado do campo os nazistas colocaram homens e do outro, mulheres. As necessidades eram feitas em latrinas nojentas, verdadeiros buracos cavados no chão. As pessoas se limpavam com papel de jornal, quando havia.

Os beliches de Westerbork, de dois ou três andares, eram de ferro e tinham colchões de palha. Pelas manhãs, os prisioneiros se higienizavam como podiam em bebedouros para uso do gado. Foi neste campo construído em 1939 que esteve Anne Frank pouco antes de morrer em Auschwitz.

Liselotte traz outro episódio destes tempos sombrios. Ela lembra ter costurado um pequeno travesseiro recheado com crinas de cavalos que utilizava na maioria dos lugares aonde ia. Este travesseiro ela guardou até o final de sua vida.

Se comparada com outras pessoas, Liselotte se considera uma pessoa abençoada. Uma prima dela, que também foi deportada, tinha feito amizade com um dos médicos que trabalhava no campo. Era o doutor Fritz Spanier (1902-1967), médico judeu obrigado a trabalhar para os alemães no hospital de Westerbork.

Essa amizade favoreceu Liselotte que, portando seu bracelete com a estrela de Davi, trabalhava como cozinheira no hospital do campo. Com este trabalho conseguiu alimentar seus pais e outras pessoas. Às escondidas guardava cascas de batata, cenouras e ossos de carne com os quais se preparava aquela sopa que ajudaria a sobreviver.

As ânsias pela libertação eram enormes. Certo dia em 1944 chegou ao campo holandês uma delegação da chancelaria alemã que constatou a autenticidade dos passaportes da Costa Rica. Foi assim que os Leiser foram trasladados a Bourboule, um campo de refugiados na França.

Uma semana depois, em 6 de junho de 1944, aconteceria o desembarque das tropas aliadas na Normandia, gerando uma emoção indescritível entre os prisioneiros. Todos se abraçavam e choravam, gritando as palavras “somos livres” por mais de cem vezes.

Uma vida nova começava para Liselotte e seus pais após a libertação. Ter sobrevivido à guerra era uma experiência inesquecível para a maioria das vítimas do Nazismo, sejam elas judias ou não. A família Leiser tinha amigos e familiares no Uruguai. Rapidamente, embarcaram rumo à Montevidéu. Lá se hospedaram por nove meses numa pensão no bairro classe-média de Pocitos.

O Uruguai não era visto pelos Leiser como destino final. A família sonhava em migrar para Argentina, mas em 1946 o regime do então presidente Juan D. Perón (1895-1974) colocava obstáculos para a imigração dos judeus ao país.

Nesse momento de pós-guerra em que reinava um forte antissemitismo na Argentina, aconteceu a terceira aparição de Alberto Grimoldi. O empresário do calçado mantinha contatos com o governo e atuou como fiador dos Leiser, para que possam ingressar e morar legalmente ao país. Grimoldi teria dito às autoridades argentinas que “o conhecimento dos Leiser seria fundamental para acelerar os planos da sua empresa”.

Já estabelecidos em Buenos Aires, Grimoldi devolveu à família judaica o dinheiro e o patrimônio dos negócios da Holanda. Como explicamos anteriormente, foi através de um contrato fictício que as lojas “Huff” haviam sido incorporadas à empresa Grimoldi.

Inicialmente, Liselotte Leiser Nesviginsky e seu marido se dedicaram ao turismo, chegando inclusive organizaram o primeiro contingente de passageiros à Antártida Argentina. Mas, com tantas atividades, Liselotte perdeu contato com Alberto Grimoldi, até tomar conhecimento, em 1953, que ele havia falecido.

Parecia que tudo caminhava para o esquecimento, porém, certa vez Liselotte e sua amiga e secretária Virginia tiveram a ideia de localizar os filhos de Grimoldi. Era a forma de poder retomar um passado já distante. Um jornal bonaerense mencionava os Grimoldi e sua sucedida trajetória empresarial. Virginia ajudou a Liselotte enviando um e-mail a Alberto Luis Grimoldi, filho de Alberto e então presidente da empresa. O vínculo havia sido retomado e o convite para um encontro não tardou em chegar.

No emotivo encontro participou a família Grimoldi. Liselotte aproveitou para comentar acerca do comprometimento de Alberto com os Leiser. Ela não cansava de repetir a forma honesta em que agiu o patriarca durante o Nazismo. Por sua parte, os Grimoldi tampouco esqueceram tão facilmente a confiança depositada pelos Leiser.

Após 50 anos de casada, Liselotte ficou viúva. Em 2013 a AMIA (Associação Mutual Israelita Argentina) rendeu merecida homenagem ao empresário do calçado Alberto Enrique Grimoldi, em que participaram seus três filhos: Lucila, Jorge e Alberto Luis. Na ocasião, estiveram presentes Liselotte Leiser Nesviginsky e seu filho Jorge.

Liselotte Leiser de Nesviginsky faleceu em 10 de dezembro de 2013. Seus filhos Jorge e Sylvie, seus netos Tatiana e Sacha; Clarita, Vicky e Estela se despediram desta guerreira com muito amor.

Bibliografia

El argentino que nos ayudó a escapar del nazismo. Mundos Intimos. CLARIN.COM, 24/08/2013. Actualizado al 08/12/2016. https://www.clarin.com/sociedad/argentino-ayudo-escapar-nazismo_0_rJkUzySowXe.html

Día de las víctimas de la Shoá. El argentino que ayudó a escapar del Nazismo. ITON GADOL. 26/01/2018. https://itongadol.com/noticias/108240-dia-de-las-victimas-de-la-shoa-el-argentino-que-ayudo-a-escapar-del-nazismo

Grimoldi: El zapatero argentino que ayudó a una familia a escapar del Nazismo. RADIO JAI 96.3. Ver artigo: https://www.radiojai.com/index.php/2020/06/30/60173/grimoldi-el-zapatero-argentino-que-ayudo-a-una-familia-a-escapar-del-nazismo/

What were some clever tactics used to save Jews during World War II that most people don’t know about? Em: https://www.quora.com/What-were-some-clever-tactics-used-to-save-Jews-during-World-War-II-that-most-people-dont-know-about

Holocaust Encycopedia. Westerbork. United States Holocaust Memorial Museum. Ver: https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/westerbork

Westerbork website: https://www.kampwesterbork.nl/

Grimoldi. Ver a história em: https://es.wikipedia.org/wiki/Grimoldi

Grimoldi. Ver o website em: https://www.grimoldi.com/grimoldi/