Índios e Judeus nas Américas

Na segunda metade do século 17, um número expressivo de “judaizantes” portugueses migrou da protestante Amsterdã ao Novo Mundo e do Novo Mundo até Amsterdã. O aventureiro Aaron (Antônio) Levi Montezinos (Vila Flor 1605-Recife 1650) foi um desses viajantes de origem sefaradita que embarcou em direção às Índias Ocidentais, visitando a capitania de Pernambuco e explorando a província de Quito no Equador. Nas Américas ele documentou a existência do índio Francisco.

Quem era o índio Francisco? Francisco havia nascido no Brasil e observava costumes totalmente diferentes do resto das tribos indígenas. Ele tinha por hábito não cortar seu cabelo nem fazer sua barba, diariamente tomava banhos rituais purificadores nos rios próximos, denominava a Deus de Adonai e reconhecia os três Patriarcas (Abraham, Isaac e Jacob) como seus legítimos ancestrais.

A enorme curiosidade do índio Francisco o levou a penetrar no desconhecido sertão brasileiro até atingir as ribeiras de um rio caudaloso, talvez o Rio das Amazonas. Lá, Levi Montezinos conversava com ele e com outras gentes estranhas que diariamente recitavam as sagradas palavras “Shemah Israel, Adonai Eloheinu, Adonai Echad” (Ouve Israel); para muitos, a verdadeira essência do Judaísmo.

Estes aborígines que cercavam Francisco não se consideravam somente uma parte inseparável do rebanho de Jacó; como também afirmavam descender das tribos de Reuven e Levi. Baseando-se em depoimentos do próprio Francisco, o judeu Aaron Levi Montezinos entendeu que estes nativos poderiam constituir-se em testemunhas vivas das afastadas “Dez Tribos Perdidas”, possivelmente presentes desde tempos remotos nas regiões mais recônditas das Américas; especialmente nas geladas e intransponíveis terras da cordilheira dos Andes.

De imediato, Aaron Levi Montezinos redigiu um Relatório que foi entregue a Manuel Dias Soeiro, mais conhecido na época como o grande rabino de Amsterdã Menasseh ben Israel (1604-1657), das maiores autoridades rabínicas da Europa. Rabi Menasseh era um homem curioso que não se conformou apenas em tomar conhecimento desta fascinante história (lenda) acerca das raízes judaicas dos índios americanos, mas decidiu também transcrever o “Relatório Montezinos” no prefácio de sua obra “The Hope of Israel” (A Esperança de Israel) publicada em Amsterdã em 1659.

No capítulo 37 do texto, o rabino holandês escreve assim: “Faz tempo que as Índias Ocidentais estão habitadas por uma parte das Dez Tribos que passaram do outro lado do Tartarie, pelo estreito de Anian”, localizado atualmente no canal de Bering.

A rigor, nenhuma exploração confirmou a hipótese levantada pelo rabino Menasseh Ben Israel. no entanto, em uma obra intitulada “A Journey to Jerusalém”, publicada em Glasgow em 1786, o britânico Richard Burton (pseudônimo de Nathaniel Crouch) relacionou os índios com as “Dez Tribos Perdidas” no ano 722 a.C, durante o reinado do imperador assírio Sargon I.

O texto do rabino Ben Israel foi ainda dedicado ao Parlamento britânico que, liderado pelo político Oliver Cromwell (1599-1658) autorizara o tão desejado “Resettlement”, o retorno definitivo dos judeus à Inglaterra após 350 anos, desde sua expulsão pelo rei Eduardo I, em 1290.

A tese endossada por Menasseh Ben Israel estava sustentada na premissa de que o “Relatório Montezinos” constituía uma prova contundente da presença nos trópicos da Profecia de Israel, na qual as “Dez Tribos Perdidas” seriam congregadas na Terra de Israel. Estava aberto o caminho para uma nova interpretação da ideia messiânica.

Naturalmente, o exótico relato de Aaron Levi Montezinos alimentou a curiosidade de círculos não judaicos. Por volta de 1650 um escritor britânico de nome Sir Thomas Thorowgood (1595-1669) redigiu a obra controversa “Jews in América or Probabilities that the Americans are of that Race” [Judeus na América ou probabilidades de que os americanos sejam desta Raça]. Naturalmente, neste curioso episódio despertou nossa atenção diante da prolixa e descontextualizada classificação “sociodarwiniana” dos judeus como raça. Isto seria viável somente em pleno século 19.

Em 1652, apareceu em Londres uma replica à obra anteriormente citada, de autoria de Sir Hamon L´Estrange (1583-1654) com o título “Americans no Jews or Improbbilities that the Americans are of that race” [Americanos não judeus ou improbabilidades de que os americanos sejam desta raça]. A esperada tréplica não demorou, e por volta de 1660, veio a resposta definitiva de Thomas Thorowgood sob o título “Jews in América or Probabilities that those Indians are Judaical, made more probable by some additionals to the former conjectures” [Judeus em América ou probabilidades que os índios sejam de origem judaica, através de conjunturas].

O “Relatório Montezinos” foi pouco estudado. Ele representa uma fonte de enorme valor para entender as ramificações judaicas da população indígena do Novo Mundo em geral, e a gestação da autóctone brasileira em particular. Sem dúvida as futuras descobertas trarão novas luzes a esta incrível tese; tão original quanto polêmica.

Bibliografia

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Sir Thomas Thorowgood, “Jews in América or Probabilities that the Americans are of that Race” [Judeus na América ou probabilidades de que os americanos sejam desta Raça], London, circa 1650.

Sir Thomas Thorowgood, “Jews in América or Probabilities that those Indians are Judaical, made more probable by some additionals to the former conjectures” [Judeus em América ou probabilidades que os índios sejam de origem judaica, através de conjunturas]. London, circa 1660.