Matthias Sindelar (1903-1939) – O desafeto de Hitler

Os Jogos Olímpicos realizados em Berlim em 1936 ficaram memoráveis pelas quatro medalhas de ouro conquistadas pelo atleta negro norteamericano Jesse Owen; diante do Führer Adolf Hitler. O fiasco do ideal de superioridade ariana se manifestou no futebol em 1938, quando o imbatível Wunderteam da Áustria, liderado pelo astro Matthias Sindelar, humilhou à Alemanha nazista. A seguir, um encontro pouco comum entre política e esporte no Terceiro Reich.

A propaganda nazista que falhava após a publicação das “Leis de Proteção e Pureza do Sangue e a Honra Alemães” ou “Leis de Nüremberg” em 15 de setembro de 1935, teve suas chances de sucesso reacendidas com a pacífica anexação da Áustria, o “Anschlüss”, em 12 de março de 1938.

A população judaica da Áustria, que nessa época contava com aproximadamente 200.000 judeus, dentre eles um número significativo de intelectuais; faria parte da nova estratégia política de Adolf Hitler. Assim, vários judeus sofreram tremendas ofensas verbais e humilhações físicas, em plena via pública; sendo obrigados a ficar durante horas limpando as ruas sob o olhar sádico dos oficiais nazistas.

Os atletas austríacos eram bem conceituados. Além do território aumentado ao Reich, os jogadores de futebol de lá em breve também seriam incorporados à seleção alemã. Naquela década de 30, o futebol da Áustria possuía um time de grandes estrelas, um versátil “Wunderteam” que mantinha o melhor jogador em atividade de então: Matthias Sindelar.

Matthias Sindelar

Filho de uma família judia pobre, Matéj Sindelár nasceu em 10 de fevereiro de 1903, em Kozlov, na Morávia, região de etnia tcheca que fazia parte do fragmentado Império Austro-Húngaro. Nada sabemos de seus pais, apenas que mudaram para o distrito de Favoriten, em Viena, levando o pequeno Matthias de apenas dois anos de idade.

O laço criado desde muito cedo com a futura Áustria seria muito forte. Sindelar começou a jogar bola nas ruas da cidade, ingressando com 15 anos nos juvenis da equipe Hertha Viena. Ali ficou até 1924, quando o time Austria Viena lhe ofereceu a chance de jogar em alto nível, para uma torcida.

Centroavante técnico e goleador, Matthias Sindelar sobressaiu-se numa época de times fortemente ofensivos. Em pouco tempo ganhou a confiança de dirigentes e da própria torcida, virando ídolo indiscutível do Austria Viena. Nesta equipe ele obteve um título internacional e cinco títulos nacionais, sendo endeusado por todo o país; principalmente depois das conquistas de 1933 e 1936 na Copa Mitropa, um torneio anterior à “Copa dos Campeões”, disputado principalmente por times da Europa Oriental, Central e da Itália.

Sindelar mereceu a alcunha de “Mozart do Futebol”. O sucesso, obviamente, seria repetido na formação da melhor seleção austríaca de toda sua história. O denominado Wunderteam, (Time Maravilha), dirigido por Hugo Meisl, possuía um estilo de jogo que iria a influenciar o futebol envolvente praticado mais tarde pela seleção da Holanda nos anos 70.

Graças ao Wunderteam nasceria anos depois o famoso “carrossel holandês” ou a “laranja mecânica” do inesquecível Johan Cruyff, apontado como o melhor futebolista europeu de todos os tempos. O esquema tático do time holandês parecia uma versão melhorada do da Hungria de 1954 e foi chamado de “carrossel” porque os jogadores não tinham posições fixas e circulavam pelo campo, buscando sempre o gol.

Com Sindelar de capitão e mais dez, a Áustria acumulou vitórias como um 5-0 e depois um 6-0 sobre a Alemanha, um 6-0 diante da Suíça e um 8-2 na Hungria. Esta seleção de futebol vistoso ergueu a Copa da Europa Central (predecessora da Eurocopa) em 1932 e foi semifinalista na Copa do Mundo de 1934; eliminada pela anfitriã Itália num dos jogos em que o Ducce Benito Mussolini “fez reunião” com a arbitragem antes de a bola rolar. Ameaçada, sem seu Mozart nem a maior parte do time principal, a Áustria levou a prata nas Olimpíadas de 1936.

Anschlüss – Anexação ao Reich

A impressão passada pela seleção austríaca nos jogos disputados era das melhores, literalmente fazia os adversários tremerem e, depois do Anschluss, (anexação da Áustria ao Reich), animou os dirigentes e cartolas alemães. Os alemães sabiam que ainda tinham futebol para mostrar na Copa do Mundo de 1938 que estava a poucos meses de começar. Com a anexação iniciada em 13 de março de 1938, circulavam boatos de que a seleção austríaca deixaria de existir. Naturalmente, o craque Matthias Sindelar seria um reforço vital para Alemanha tentar o título mundial.

Sindelar, no entanto, não compactuava com o poderoso regime nazista. Sentia-se um austríaco soberano, e considerava inaceitável ter que submeter-se à suástica que fizera seus bons amigos judeus funcionários do Áustria Viena, serem perseguidos e dispensados de seus trabalhos.

No dia 03 de abril de 1938, no vestiário do Praterstadion de Viena, Sindelar tinha tudo isso em mente quando ignorou as ordens claras que eram passadas ao seu time: nada de marcar gols. Aquela era a data comemorativa em que se festejaria a “reunificação” da Áustria com a Alemanha, fazendo uma despedida simbólica do selecionado austríaco com um jogo amistoso diante do próprio combinado alemão, que não podia ser derrotado naquele momento histórico. No máximo, com muito esforço, os alemães cederiam um empate honroso.

Porém, nada disto estava nas mãos dos jogadores. A Áustria era muito melhor. Era ela que decidia quando converteria seus gols. Fazê-los ou não dependia do temor às intimidações feitas antes da entrada em campo. Mas Sindelar, o capitão do time, não se acanhou.

O belo poema “Auf den Tod eines Fußballers” (Balada da morte de um futebolista), de Friedrich Torberg, em homenagem a Matthias Sindelar afirma: “Ele sempre jogava”, nunca tinha medo das consequências. Frente à Alemanha marcou um golaço, comemorou dançando “Rheinland Pfalz” (uma dança popular austríaca) em frente à tribuna onde sentavam as autoridades nazistas.

Comenta-se que a galera foi ao delírio total enquanto Sindelar gritava eufórico o nome de seu amado país, fazendo que seus companheiros se unam à causa; perdendo o medo de vencer a partida. Com gols de Matthias Sindelar e Karl Sesta nos 20 minutos finais, o jogo terminou 2-0 para Áustria.

Resistência e morte                                                     

A resistência de Matthias Sindelar se manteve, sem jamais abandonar sua amada Áustria. Der Papierene, o famoso “homem de papel” que driblava com suavidade e categoria em campo; esnobava tentando “fugir” das convocações para defender a seleção alemã dos anos 30: ora dizia estar velho demais, ora justificava sua ausência com uma “lesão inoportuna”. A verdade é que Sindelar nunca quis defender a seleção germânica, pois detestava a intolerância e a prepotência dos nazistas. Pior ainda, era fazer o sinal de saudação ao Führer.

O episódio da provocação aos oficiais no amistoso contra Alemanha não fora esquecido, e as repetidas ações de Sindelar avivavam um descontentamento por parte do Terceiro Reich. Como símbolo, ele era considerado pela temida Gestapo (Geheime Staatspolizei) um elemento repulsivo, pernicioso e nocivo; cujo exemplo poderia se espalhar pela população austríaca.

O jogador também passou a viver dias mais difíceis, privado de jogar o futebol que tanto amava, uma vez que atuar pelo seu clube era tido como uma afronta, diante das negativas à seleção nacional da Alemanha.

Seus dias no Reich estavam contados. Em 23 de janeiro de 1939, com apenas 35 anos, o jovem atleta Matthias Sindelar e sua mulher judeu-italiana Camilla Castagnola; foram encontrados mortos num modesto apartamento em Viena, ambos intoxicados com gás monóxido de carbono enquanto dormiam.

As circunstâncias da morte do casal nunca foram esclarecidas, pairando até hoje uma áurea de mistério. Quem teria matado o craque Matthias Sindelar? Foi suicídio ou assassinato? A morte do astro do futebol gerou rumores de que teria sido assassinado pelos nazistas, o que ganhou força pela falta de testemunhas e, principalmente, após posterior divulgação de que Sindelar estava sendo investigado pela Gestapo, onde em sua ficha constava-se a classificação de “judeu”, e “social-democrata”, dois crimes contra o Estado. De fato, muitos dos dirigentes e jogadores do time Austria Viena na época eram judeus, e o clube passava por problemas até para manter o nome, que poderia simbolizar um nacionalismo austríaco contra a anexação.

Na versão alemã Matthias Sindelar teria cometido suicídio, em razão de uma profunda depressão sofrida pela submissão política do seu amado país ao expansionismo do Terceiro Reich. Já os austríacos argumentavam que sua morte foi totalmente acidental ou talvez fosse vítima de assassinato. Na versão da Gestapo, duas das hipóteses mencionadas foram rapidamente descartadas, restando apenas àquela que qualificou a ocorrência como acidente.

O “Affair Sindelar” agitou fortemente à sociedade austro-germânica. Amigos próximos do jogador conseguiram arquivar as investigações para que Sindelar pudesse receber honras de Estado em seu funeral; algo impedido pelas leis nazistas quando há indícios de um elemento criminal. Dezenas de milhares de vienenses saíram às ruas para acompanhar o cortejo fúnebre. O time Austria Viena recebeu 15.000 telegramas de condolências dos fãs e sócios.

O “Mozart do Futebol” foi enterrado no “Wiener Zentralfriedhof”, (Cemitério Central de Viena), inaugurado em 1874, segundo maior da Europa e o primeiro em número de sepulturas. Nesse mesmo lugar estão os túmulos de músicos virtuosos tais como Ludwig van Beethoven, Johannes Brahms, Franz Schubert e Johann Strauss. Sobre fortes medidas de segurança, no enterro de Sindelar participaram 40 mil pessoas; temendo-se uma rebelião dos presentes.

Em Viena, metrópole cosmopolita, existe ainda hoje a Sindelarstrasse, uma rua em homenagem ao rebelde goleador. Ali ecoam ainda os versos do poema dedicado a Matthias Sindelar pelo judeu austríaco Friedrich Torberg (1908-1979); tradutor para o alemão do escritor, roteirista e dramaturgo israelense Ephraim Kishon (1924-2005); e tido como um dos poetas antinazistas mais brilhantes daqueles tempos.

Poema “AUF DEN TOD EINES FUßBALLSPIELERS” (Balada da morte de um futebolista) por Friedrich Torberg.

Er war ein Kind aus Favoriten
und hieß Matthias Sindelar.
Er stand auf grünem Platz inmitten,
weil er ein Mittelstürmer war.

Er spielte Fußball, und er wußte
vom Leben außerdem nicht viel.
Er lebte, weil er leben mußte
vom Fußballspiel fürs Fußballspiel.

Er spielte Fußball wie kein zweiter,
er stak voll Witz und Phantasie.
Er spielte lässig, leicht und heiter,
er spielte stets, er kämpfte nie.

Er warf den blonden Schopf zur Seite,
ließ seinen Herrgott gütig sein,
und stürmte durch die grüne Weite
und manchmal bis ins Tor hinein.

Es jubelte die Hohe Warte,
der Prater und das Stadion,
wenn er den Gegner lächelnd narrte
und zog ihm flinken Laufs davon.

Bis eines Tages ein andrer Gegner
ihm jählings in die Quere trat,
ein fremd und furchtbar überlegener,
vor dem’s nicht Regel gab noch Rat.

Von einem einzigen harten Tritte
fand sich der Spieler Sindelar
verstoßen aus des Planes Mitte
weil das die neue Ordnung war.

Ein Weilchen stand er noch daneben,
bevor er abging und nachhaus.
Im Fußballspiel, ganz wie im Leben,
war’s mit der Wiener Schule aus.

Er war gewohnt zu kombinieren,
und kombinierte manchen Tag.
Sein Überblick ließ ihn erspüren,
daß seine Chance im Gashahn lag.

Das Tor, durch das er dann geschritten,
lag stumm und dunkel ganz und gar.
Er war ein Kind aus Favoriten
und hieß Mattihas Sindelar.

Tradução:

Ele era um garoto de “Favoriten”

e chamava-se Matthias Sindelar.

Ele ficava no meio de campo verde,

pois era um centro-avante.

Ele jogava futebol e, além disso,

muito não sabia sobre a vida.

Vivia, por que tinha que viver, de jogar futebol e futebol.

Jogava futebol como ninguém,

tinha graça (ginga) e fantasia.

Possuía um toque leve e alegre

Sempre jogava, ele nunca lutava.

Ele jogava a loira cabeleira de lado,

deixando o Senhor Deus bondoso, 

atacando na verde imensidão,

algumas vezes, até [ir] dentro do gol.

Vibrava o Hohe Warte (Estádio em Viena),

o Prater (parque de Viena) e o estádio quando, sorrindo;

zombava do adversário, fugindo rapidamente dele.

Até que certo dia, repentinamente,

um adversário; superior, estranho e terrível,

o enfrentou de igual para igual, sem regras nem conselhos.

De um único golpe (chute) duro

sentiu-se o jogador Sindelar,

expulso do meio de campo pois essa era a nova ordem.

Por um instante ele ainda ficou lá, antes de sair e ir para casa.

Tanto no futebol como na vida

era seu fim na escola de Viena.

Ele estava acostumado a combinar,

e combinava alguns dias.

Sua previsão fez-lhe sentir,

que seu futuro estava na câmara do gás

O Gol, pelo qual entrou,

ficou em silêncio e escuro por completo.

Ele era um garoto de Favoriten, 

e chamava-se Matthias Sindelar.

(Tradução: José de Quadros e Rudi Eckhardt)

Palavras Finais

Sindelar teve merecidas despedidas, dignas de um herói que tentava resistir a Hitler. Em 1998, passadas seis décadas do seu misterioso falecimento, ele foi eleito o jogador austríaco do século 20. Se tivesse optado por defender a equipe nazista, poderia certamente haver continuado sua vida de astro do futebol. Todavia Matthias Sindelar escolheu o caminho mais difícil, o caminho dos bravos e dos justos, e acabou pagando com sua própria vida.

Não muito longe do “Estádio Ernst Häppel”, o lugar em que as duas seleções, da Alemanha e da Áustria, disputaram aquele memorável jogo; encontra-se a sepultura de Matthias Sindelar. Ela é visitada, religiosamente a cada ano, por pessoas que aprenderam uma lição de vida das atrocidades perpetradas pelo autoritário regime nazista.

Infelizmente, a carreira deste grande craque do futebol foi interrompida pela crueldade do homem, traduzida na violenta máquina de terror nazista que manchou de sangue para sempre a nossa história. Mas não restam dúvidas que Matthias Sindelar, o grande desafeto de Adolf Hitler, será sempre lembrado como um homem especial que desafiou com bravura o establishment, sem nunca ter abdicado de seus princípios e valores.

Bibliografia

Dutra, Daniel, Sindelar, o craque austríaco que provocou Hitler. Press Fut. A Casa do futebol. Matéria de 6 de janeiro 2020. Ver: https://pressfut.com/post/sindelar-o-craque-austriaco-que-provocou-hitler/

Matthias Sindelar, O homem que provocou Adolf Hitler. VAVEL – The International Sports Newspaper, edição de 30 de outubro de 2013.

Jonathan Wilson, Sindelar: The Ballad of the tragic Hero. The Guardian, Tuesday, April 3th 2007. Ver o artigo de Wilson em: https://www.theguardian.com/football/2007/apr/03/sport.comment3

Maderthaner, Wolfgang, Der “papierene” Tänzer: Matthias Sindelar, ein Wiener Fußballmythos. Wien 1992.