Mística e Cabala em Portugal: D. Francisco Manuel de Mello – Século 17

O “Tratado da Ciência Cabala” é a obra menos conhecida da produção literária de D. Francisco Manuel de Mello (1608-1666), o escritor do barroco português mais lido do século 17. Trata-se da única obra que desenvolve uma sistematização do misticismo judaico, e ao mesmo tempo, resume conhecimentos esotéricos e hermenêuticos que compõem a tradição judaica; elaborada nos séculos 12 e 13 na região da Provença e posteriormente em toda a Espanha (BERNAT VISTARINI, 1992, p. 60 e COSTA, 1941, pp. 178-191).

O misticismo judaico foi um movimento de caráter erudito, liderado por vários sábios de renome, como R. Moshe ben Nachman (1194-1270), o Ramban ou Nachmânides; (autor de textos que exerceram enorme influencia sobre cabalistas posteriores) e R. Moshe ben Shem Tov de Leão (1240-1305), quem compilou o “Sêfer Házohar” (Livro do Esplendor) de R. Shimon bar Yochai, obra fundamental dos místicos judeus, escrita ao redor de 1300.

O “Sêfer Hazohar” é basicamente uma coletânea de textos que incluem comentários acerca dos aspectos místicos da Torá e interpretações sobre misticismo, cosmogonia judaica e psicologia mística. O livro traz longas discussões sobre a natureza e essência de D´us, a formação e estrutura do cosmos, a natureza da alma humana, a redenção, a relação entre o bem e o mal, a luz e as trevas, a verdade e a falsidade, a fonte de energia universal que aciona o mundo e a essência do homem. As explicações do “Zohar” ainda abordam explicações esotéricas extraídas da literatura rabínica conhecida como Midrash (SECRET, Le Zohar, 1964, introdução).

A expulsão dos judeus da Espanha decretada pelos Reis Fernando e Isabela, em 1492, obrigou a maioria dos membros das comunidades sefaraditas a exiliar-se, e, desta forma, o “Zohar” passou a difundir-se com intensidade por todas as comunidades judaicas localizadas fora da Península Ibérica. Assim, o forçado exílio espanhol se nutre de duas vertentes: por um lado, uma linha cabalística da escola de Gerona, Barcelona e demais centros judaicos da Espanha, e pelo outro, uma corrente originária da França e da Itália, influenciando não apenas as comunidades judaicas, mas também os círculos de intelectuais cristãos.

Cabalistas cristãos

Ao final do século 15, através da publicação de éditos de expulsão, os países ibéricos desterram e convertem forçosamente os judeus, acabando não apenas com a tradição cabalística, mas também com a rica cultura hebraica, desenvolvida durante mil anos na Espanha e Portugal (BLAU, 1941, introdução e FAINGOLD, 1993, pp. 293-300).

Alguns dos exilados hispano-portugueses de 1492-1497 migraram rumo à Itália. Ali, durante o Renascimento se redigiram os mais destacados estudos sobre a Cabala, sempre sob uma perspectiva cristã. Assim, alguns cabalistas e filósofos italianos como Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494) e Marsílio Ficino (1433-1499) difundem a arte da Cabala entre humanistas europeus. Os principais ensinamentos místicos e hermenêuticos de Pico della Mirandola serão resumidos na destacada obra “De Arte Cabalistica” (1516) do humanista e mestre de hebraico alemão Iohannis Reuchlin (1455-1522); e posteriormente, em 1543, no “Diálogo Evangélico” do cortesão luso D. João de Barros (1496-1586), autor da monumental obra “Décadas da Ásia Portuguesa” (SECRET, 1979, p. 241 e sobre Barros, ver: REVAH, 1950, pp. xxvii-xlviii).

Na Itália renascentista, Paolo Ricci (1480-1541), um judeu convertido ao Catolicismo, irá conciliar antigas tradições talmúdicas e cabalísticas com princípios do Cristianismo. Ricci, além de ter sido um estudioso da astrologia foi professor de hebraico, filosofia e Cabala. Autor prolífico, ele foi um grande conhecedor e tradutor de textos hebraicos que retomou ideias de Giovanni Pico della Mirandola e Iohannis Reuchlin, mantendo uma controvérsia neoplatônica com o teólogo da Contra Reforma, Johannes Eck, sobre a existência de vida nos corpos celestes, sobre a alma das estrelas, a vida em outros planetas, entre outros (ESTRUCH-TOBELLA, 1993, pp. 25-29, especialmente p. 26).

A primeira metade do século 16 trouxe o auge da Cabala. Tanto no Papado como nos círculos eclesiásticos italianos, a presença de eminentes rabinos e líderes espirituais judaicos, era vista com normalidade. O cardeal Egido de Viterbo (1472-1532), figura enciclopédica ímpar, que fez traduções ao latim dos principais textos cabalísticos.

Porém, as determinações do Concílio de Trento (1546) geraram um clima de forte desconfiança religiosa e intolerância, ocasionando uma imediata ruptura entre Cristianismo e Judaísmo. A partir desse momento, na segunda metade do século 16, a Cabala cristã passará a ser uma linha de pensamento suspeita de crime de heresia, e condenada a desenvolver-se na clandestinidade. Qualquer intelectual interessado nos ensinamentos da Cabala cristã; estava sujeito a perseguições por parte da Igreja. Não obstante, a mística judaica continuou a influenciar nos pilares de sustentação da cultura ocidental.

Segundo François Secret, maior historiador do esoterismo cristão: “após a expulsão dos judeus em 1492 e o estabelecimento da Inquisição, Espanha – o maior centro de difusão da corrente apologética da Cabala – manifestou uma tendência geral de desconfiança e hostilidade para com a Cabala cristã”. Para Secret é emblemática a atitude do teólogo espanhol Pedro Sanchez Ciruelo (1470-1548) que na obra “Paradoxae Questiones” (1538), condena o uso da Cabala pelos cristãos; criticando duramente a Giovanni Pico della Mirandola por ter iniciado estudos cabalísticos, gerando polêmicas interpretações e dificultando a visão cristã (SECRET, 1979, p. 241).

Um clérigo português que escreveu textos em espanhol foi D. Gaspar Barreiros (1515-1574). Em sua obra “Comentário sobre Ophir”, publicada em Évora em 1560, ataca a todos “aquellos judíos que se dedican a interpretaciones delirantes, y que edifican nuevos sentidos que nada tienen que ver com las antiguas decisiones de los Padres”. Outro autor luso, talvez menos conhecido, foi Ludovico de São Francisco. Em seu texto “Globo de las Reglas y de los Arcanos de la Lengua Santa y de la Divina Escritura” (Roma, 1586), estuda a língua hebraica e aproveita o momento para atacar  duramente a Cabala (SECRET, 1979, p. 246).

No século 17, o inquisidor de Évora D. Manuel Vale de Moura (1564-1650) escreveu um pequeno opúsculo intitulado “De Encantationibus et Ensalmis” (1620), e nele compara a Cabala com práticas mágicas e superstições. Na obra, Moura nega qualquer superioridade dos judeus na arte de curar (ESTRUCH-TOBELLA, 1993, p. 27).

Foi este o contexto histórico-cultural que motivou o pensador e escritor D. Francisco Manuel de Mello a redigir uma obra didática sobre a Cabala. Como constatamos, num clima de fortes suspeitas e receios criados ao redor desta doutrina mística judaica; não é estranho que o “Tratado da Ciência Cabala” tenha permanecido manuscrito até 1724. A aparição do livro, um tanto tardia, explica-se pelo fato que somente uma política tolerante e ilustrada como a política do rei D. João V (1706-1750), teria possibilitado a sua publicação e leitura. Esta afirmação é significativa, pois se D. Francisco Manuel de Mello tivesse publicado o “Tratado” ainda em vida, certamente a censura inquisitorial teria impedido sua difusão e sua leitura. O pesquisador Marcos R. Barnatan destaca “a coragem do autor, que se atreve a abordar temas polêmicos, ciente que naquela época lhe renderia um processo inquisitorial” (BARNATÁN, 1974, p. 246). É provável que seu destino final tivesse sido a fogueira.

Contexto do ”Tratado de Ciência Cabala”

É difícil determinar quando teria sido escrito o “Tratado da Ciência Cabala”. Na obra “Hospital das Letras” (1657), aparece uma lista dos escritos de D. Francisco Manuel de Mello, e ali é citada outra obra também de 1657, intitulada “Ars Cabalistica”. Talvez, tenha sido o próprio autor quem a anexou à lista. Seja como for, o importante aqui é refletir acerca das circunstancias que o motivaram a escrever um texto como este; focado no saber semiclandestino da Cabala. Praticamente, o único que sabemos é o que ele mesmo coloca no início da obra. Segundo suas palavras, o seu interesse pela Cabala “provém de algum conhecimento de seus preceitos, que já tivera fora deste Reyno, por conferencia mais que doutrina, com um varão doutíssimo que honestamente a professava ou, para melhor dizer, a conhecia” (MELLO, fol. 21).

Francisco Manuel de Mello é extremamente discreto nas suas afirmações, e parece quase impossível saber quem poderia ser esse “varão doutíssimo” que o iniciou nos mistérios da Cabala. Da menção feita que “já tivera fora deste Reyno” (Portugal), podemos deduzir que foi nos Países Baixos, território onde Francisco Manuel de Melo foi diplomata a partir de 1639. Tudo indica que Mello teria entrado em contato com um sábio judeu sefaradita, daqueles que habitavam em ambientes cultos de Amsterdã, uma cidade protestante onde a filosofia judaica despertara grande interesse.

Para ilustrar este apogeu cultural, podemos citar a obra “Cabalae Grammaticae” (Bruxelas, 1642) escrita pelo matemático e filósofo espanhol Juan Caramuel Lobkowitz (1606-1682), que adquiriu fama como professor da famosa Universidade de Louvain, o maior centro de filosofia da época. Por motivos estritamente políticos, Lobkowitz foi severamente criticado por Francisco Manuel de Mello na obra “Declaração pelo Reyno de Portugal”, escrita em 1663.

Outro crítico de Caramuel Lobkowitz foi o filologista Erycius Puteanus (1574-1646), autor da “De Annagramatismo Cabalae”, um livro publicado em Bruxelas em 1643. Todas as publicações aqui citadas possuíam um caráter altamente elitista, e demonstram claramente que durante toda sua estadia nos Países Baixos, Francisco Manuel de Melo procurou sempre contatar-se com intelectuais que mantinham uma grande curiosidade pela mística e esoterismo judaico (ESTRUCH-TOBELLA, 1993, p. 28).

Há pesquisadores como Alfredo Margarido que acreditam que o interesse de Francisco Manuel de Mello pela Cabala tem raízes portuguesas. Num breve artigo do “Diário de Notícias” (Lisboa, 22/04/1960) ele afirma: “… parece existir em D. Francisco Manuel de Melo a dedada de um hebraísmo que, não pertencendo ao sangue, nem a educação, lhe fosse instilado pelo processo em que estava inscrito. À educação e ao nascimento sobrepor-se-iam, deste modo, os valores culturais que, empapados de Judaísmo, iam persistindo apesar da ação do Santo Ofício” (MARGARIDO, Diário de Notícias, em 22/04/1960).

O estudioso B.N. Teensma vai ainda mais longe nesta hipótese. Para ele, a atração de Francisco Manuel de Mello pela Cabala, está nas conversas de sua família lusitana. Esta explicação se fundamenta, talvez, nos “Apólogos Dialogais” (1721), uma crítica moral e social acerca dos cristãos novos que atuam no comércio durante o mercantilismo. Não obstante, esta tese não tem sólidos argumentos, uma vez que Melo afirmou ter aprendido Cabala fora de Portugal. Além disso, já na segunda metade do século 17, a cultura luso-judaica ficou reduzida a níveis mínimos; principalmente como resultado  das constantes perseguições inquisitoriais (TEENSMA, 1966, pp. 9-11). Sem cair em devaneios ou especulações, é factível que ele tenha adquirido seus conhecimentos sobre Cabala na Europa, influenciado por uma tradição luso-judaica, da qual restavam tênues vestígios.

Motivações para escrever o “Tratado”

No início do “Tratado da Ciência Cabala”, D. Francisco Manuel de Mello narra às circunstancias que o motivaram a escrever sobre o tema. Ele relata que por motivo do encarceramento de um “estrangeiro” acusado pela Inquisição de praticar a Cabala, um grupo de intelectuais (entre os quais ele se encontrava), comentou este trágico episódio. Durante a conversa nenhum dos participantes sabia explicar o que era esta doutrina, até que foi Mello quem, baseando-se em conhecimentos adquiridos fora de Lusitânia, conseguiu explicar a seus amigos a essência da Cabala. Os ouvintes ficaram tão maravilhados com suas explicações a ponto de solicitar-lhe que escrevesse um livro sobre o tema (ESTRUCH-TOBELLA, p. 30).

O relato caracteriza a Cabala como uma ciência estranha, completamente desconhecida em Portugal: um estrangeiro detido e um grupo de intelectuais portugueses discutindo entre si, mas ninguém sabe absolutamente nada de Cabala. Francisco Manuel de Mello é o único que sabe algo. Esta situação não é falsa, ao contrário, o “Tratado” informa que a “antiga ciência cabalística / tanto em Portugal como em toda a Europa / estava já por longos tempos esquecida” (MELLO, fol. 19).

A curiosidade e o interesse manifestado por D. Francisco Manuel de Mello perante a Cabala testemunha a versatilidade deste intelectual, que não poupa suas críticas à ortodoxia católica. Todas estas declarações são inevitáveis, prudentes, quase sempre destinadas a acalmar os receios inquisitoriais. São críticas categóricas que possuem uma linha dogmática, oposta a seu calmo e moderado temperamento.

No “Tratado da Ciência Cabala”, D. Francisco Manuel de Mello exalta o exacerbado nacionalismo lusitano, intimamente vinculado ao Catolicismo. Para ele, não é pouca a glória obtida pela nação portuguesa, detentora de uma fé católica extremamente pura. Esta observância da fé já aparece entre os ancestrais lusos, os quais se mantiveram zelosos em matéria de religião.

O escritor do “Tratado” faz uma clara referencia a ação do diabo, que com suas falsidades atrapalha as pessoas cultas, presas fáceis de toda sorte de superstições. Melo vincula com certa facilidade a heterodoxia religiosa a dissidências sócio-políticas; sem dúvida uma antiga relação que ficou comprovada em modernos estudos sociológicos e históricos.

O motivo que impulsionou Francisco Manuel de Mello a escrever o “Tratado da Ciência Cabala” foi a imperiosa necessidade de fazer conhecer em Portugal e na Europa a sabedoria cabalística, uma ciência esquecida pela intelectualidade da época. Este autor confessa (MELLO, fol. 19) que não pretende ensinar a Cabala, mas sim escrever sobre ela. Isto não se opõe à crença na religião católica. Muito pelo contrário, Melo aconselha aos correligionários portugueses manter-se fiéis ao Catolicismo, pois somente assim serão beneficiados “mediante a divina graça que toma por instrumento a autoridade e ofícios da Santa Inquisição” (MELLO, fol. 149).

Verdadeira e falsa Cabala

A necessidade de não afastar-se da doutrina cristã é uma constante do “Tratado da Ciencia Cabala”. Para manter-se fiel à ortodoxia cristã, ele distingue duas linhas diferentes da Cabala: a Cabala verdadeira (justa e compatível com o Catolicismo) e a Cabala falsa (injusta e incompatível com a doutrina de Cristo). Segundo suas próprias palavras: “… diremos segundo os católicos, que a justa Cabala foi uma profunda meditação de mistérios ocultos, deduzida de nomes, letras, números e figuras dos livros divinos; e a injusta [Cabala] uma ficção judiciária que, incertamente, prognosticava o futuro por vãs observações, misturando o sagrado e o profano” (MELLO, fol. 40; em ESTRUCH-TOBELLA, pp. 31-32).

Esta distinção de Francisco Manuel de Mello não é nova, já que ela segue uma tradição cristã da Cabala renascentista, uma linha de pensamento que utilizou a hermenêutica cabalística (a busca de significados ocultos através da Guematria, Temurá e Notarikón) para interpretar a Bíblia. Para Mello não existe a possibilidade de utilizar a Cabala das “sefirot” (dignidades) na interpretação bíblica, por tratar-se de “práticas que não havemos de usar nem escrever”, e a Cabala da “temurá” (mudança) não pode ser aplicada, pois “nada acrescenta por razão de seu perigo” (MELLO, fol. 53).

Francisco Manuel de Mello também condena categoricamente a Cabala da adivinhação (MELLO, fol. 42), já que este tipo de linha mística gera diferentes obstáculos à doutrina oficial da Igreja. O interesse de Mello pela Cabala não se limita ao estudo exclusivo de textos sagrados, e sim pelo estudo da linguagem, uma questão bem próxima a sua tarefa de escritor. Em outra obra intitulada “O Fénix da África”, ele assume uma posição nominalista perante a relação entre palavras e objetos. Na opinião do autor lusitano, nenhuma das palavras possui um sentido próprio senão meramente acidental (MELLO, 1664, p. 138).

No “Tratado”, muito influenciado pela tradição platônica, Mello demonstra que há uma forte relação entre res (coisas) e verbo (palavras). Para ele, nomes, letras, números e figuras, geram associações invisíveis ao entendimento humano, e é através deles que renascem na imaginação novos nomes, letras, números e figuras. Desta forma, cria-se uma espécie de comunicação espiritual, pela qual os significados íntimos das palavras permitem transmitir não apenas significados, mas também afetos e paixões. Para Mello, “as palavras possuem espírito e corpo: o corpo seria o som da palavra enquanto o espírito seria o próprio valor intrínseco dela” (MELLO, fols. 71-72).

A estrutura interna do “Tratado” foi pensada e ajustada com clareza a um determinado objetivo educativo cristão. Cada um dos capítulos introdutórios desmistifica tanto os escrúpulos dos leitores como os receios dos censuradores, reafirmando uma fidelidade à Igreja. Os treze primeiros estão dedicados a expor a definição de Cabala, suas origens, sua visão de mundo, dentre outros. Do capítulo quatorze ao capítulo vinte e três D. Francisco Manuel de Mello se desliga por completo das fontes, abordando com liberdade a teoria “platônica cabalística” da linguagem, as propriedades esotéricas das palavras, dos números, das figuras e até das letras. O capítulo vinte e quatro retoma os principais autores e obras que versam sobre Cabala.

A simbologia oculta na Cabala

Francisco Manuel de Mello se interessou ainda pelos números, letras e símbolos. Os números, (assim como palavras) detém virtudes espirituais intrínsecas, que oferecem um sentido esotérico à realidade material: “A maior razão de sua nobreza, virtude e mistério vem a ser porque o número e alma da quantidade, e como todas as coisas estão abraçadas pela matéria e pela forma, e não há matéria sem quantidade, nem quantidade sem número, assim como o número e a alma da quantidade, assim compreende tudo o que é quantidade, e a quantidade tudo o que compreende a matéria, e a matéria compreende todas as coisas, donde se segue que o número compreende todas as coisas que compreende a matéria” (MELLO, fol. 115, ESTRUCH TOBELLA, p. 34).

Neste trecho de D. Francisco Manuel de Mello faz elucubrações filosóficas platônicas e pitagóricas. Tomemos como exemplos as letras e as figuras. Para ele, as letras apresentam inúmeras propriedades intrínsecas, além da aparente função representativa dos fonemas. Cada uma das letras hebraicas, por exemplo, possui um sentido esotérico definido (MELLO, fol. 102). Assim como os nomes, todas as letras estão compostas por matéria (som) e forma (figura), e a primeira destas, o “som”, será essencial em todas as línguas humanas.

As letras escritas por cada ser humano revelam traços particulares e significados profundos, expressando a psique de quem escreve. Sendo assim, esta velha arte de conhecer a escritura através de quem escreve, (hoje denominada grafologia), surge de uma ciência de enorme versatilidade intelectual que despertou a curiosidade científica do escritor português D. Francisco Manuel de Mello.

No que tange ao significado das figuras, o pensamento cabalístico de Francisco Manuel de Mello se alimenta da tradição pitagórica, que assinala a cada ideia um símbolo representativo, o qual daria origem à metonímia (MELLO, fol. 127).  A aplicação desta teoria não foi criada pelo escritor luso, e já aparece na literatura do barroco italiano.

Resumindo, podemos afirmar que o estudo da Cabala interessou a Mello não tanto pela sua linha filosófica-teológica (predominante nos denominados cabalistas hebreus ou cristãos), mas pela linha esotérica que lhe permite fazer curiosas interpretações. É possível que esta orientação esotérica esteja condicionada ao temor de D. Francisco Manuel de Mello em ultrapassar os limites da ortodoxia católica do seu tempo, embora seja provável que esta escolha tenha sido fruto do livre arbítrio do próprio autor.

Conhecendo a produção literária de D. Francisco Manuel de Mello, sabemos que sua inclinação por temas filosóficos não era forte, preferindo sempre questões linguísticas e numéricas. Seu interesse pela Cabala não deve ser entendido como um desejo de aproximar-se à religião judaica, pois sabemos que ele jamais deixou de manifestar seu sincero Catolicismo.

Palavras finais

A ligação de D. Francisco Manuel de Mello com os conversos judaizantes é bastante duvidosa. Não há nada que indique uma identificação com cristãos novos portugueses; elementos estigmatizados e marginalizados da sociedade. Sua curiosidade pela Cabala responde ao prazer geral dos “Seiscentos”, uma época que supervalorizava as artes e as ciências; procurando achar significados ocultos e profundos em realidades sensíveis.

A partir desta sensibilidade, Francisco Manuel de Mello percebeu na Cabala um velho conhecimento que unia perfeitamente duas antigas vertentes: a) a interpretação sensível de realidades conceituais, compostas por palavras, figuras, números e fonemas; e b) a configuração de uma metodologia esotérica que permitia desvendar significados misteriosos e ocultos destas realidades. Certamente, o autor português foi um dos poucos escritores do barroco (talvez o único da Península Ibérica) que se aventurou a estudar a “Ciência Cabala” de uma forma sistemática.

A característica mais notável do “Tratado da Ciência Cabala” é seu valor pedagógico. Mesmo tendo manifestado que o escreveu sem pretender introduzi-la ou ensiná-la (MELLO, fol. 39), a verdade é que o texto preenche uma função educativa única.  Segundo Francisco Manuel de Mello, aqueles que atacam a Cabala, o fazem pelo pouco conhecimento que possuem dela. É a intenção didática e pedagógica que faz o autor do “Tratado” adotar um estilo simples e claro, carente de qualquer retórica vulgar. Embora a filosofia da Cabala seja frequentemente um tema escuro e abstrato, Melo consegue abordá-lo com uma alta dose de amenidade.

Concluímos esta reflexão acerca do Tratado da Ciência Cabala afirmando que, mesmo carecendo de grande interesse histórico ou literário, a obra detém um indiscutível valor didático cultural. Afinal, este texto de D. Francisco Manuel de Mello constitui a única tentativa realizada na Península Ibérica de resgatar um saber completamente esquecido durante os séculos 17 e 18.

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