O caso do cristão novo português Vicente Furtado

Em 1981, ainda jovem estudante de História; ingressei pela primeira vez no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) em Lisboa onde fui pesquisar material para minhas teses de mestrado e doutoramento em História Judaica pela Universidade Hebraica de Jerusalém. Lá me deparei com uns 40.000 (quarenta mil!) processos que a Inquisição moveu contra cristãos novos ou “judaizantes” portugueses. Nos últimos anos retornei outras vezes a Portugal para aprofundar meus estudos; publiquei sobre a matéria diversos artigos em revistas científicas de Israel, Argentina e Brasil.

Em uma dessas viagens, encontrei entre outros, um processo de 93 folhas a respeito do jovem Vicente Furtado que passo a relatar nesse artigo. Vicente Furtado nasceu em Lisboa em 1583, ou seja, 85 anos depois da conversão forçada dos Judeus Portugueses. Foi batizado na Igreja de São Paulo, tendo como padrinho o Arcebispo Dom Miguel de Castro. Ele já tinha completado 22 anos quando a Coroa Portuguesa, necessitada de dinheiro, ofereceu aos cristãos novos o assim chamado “Perdão Geral”, que em verdade era eufemismo para a Coroa vender “salvo-condutos” (permissões de saída) a conversos que quisessem deixar Portugal, em troca de dinheiro grosso.

Dessa forma, em 1605, Vicente Furtado sai de Portugal e vai a Hamburgo. De lá viaja a Londres de onde retorna a Hamburgo, localidade essa que o encanta e para onde retornaria muitas vezes. De Hamburgo viaja para Flandres e para a Holanda. Algumas vezes voltou clandestinamente a Portugal para visitar parentes e amigos em Alcântara, Coimbra, região das Beiras, Lamego e Braga, encontrando também cristãos novos vindos de Madrid, Nápoles e até do Brasil.

Em 1609, viajando dentro de Portugal, Vicente Furtado é finalmente preso pela Inquisição, acusado de “judaizar”, isto é, praticar secretamente a religião judaica. No dia 14 de março de 1609, durante a instrução do processo do Santo Oficio da Inquisição, é realizada a “secção de genealogia” de Vicente Furtado.

Essa secção de genealogia, de fundamental importância, era muito comum em processos desse tipo, pois, os dados ali obtidos eram então cruzados com outros processos em andamento, possibilitando novas denuncias contra as pessoas lá mencionadas que por sua vez, sobre tormentos, forneceriam mais nomes e, assim sucessivamente, iriam alimentar as poderosas engrenagens da Inquisição de Portugal. Os citados na sessão de genealogia, caso não fossem presos, já tinham suficientes motivos para passar o restante de suas vidas em absoluto pavor, assim como seus filhos e netos também.

Ao longo do processo, o tribunal da Inquisição de Lisboa apurou os seguintes fatos sobre Vicente Furtado: Era solteiro, 26 anos, sem profissão, natural e morador de Lisboa; era o filho de Duarte Furtado e Francisca Palacios. Em Londres havia permanecido na casa de Gabriel Fernandes (filho de Luiz Fernandes, um dos primeiros cristãos novos a migrar para a Inglaterra durante o reinado de Elisabeth,) onde também viviam seus irmãos menores, Duarte Fernandes e Manoel Rodrigues Veiga (1/2 irmão).

A casa de Gabriel Fernandes era usada pelos “Novos Judeus“ saídos de Portugal como uma espécie de sinagoga, para estudar a Bíblia, manter o Shabat, jejuar e rezar. Em Hamburgo ficou na casa de seu primo irmão Álvaro Dinis, rico comerciante, cristão novo, que hospedava em sua casa mais nove funcionários seus, que com ele próprio, somavam 10 pessoas: um minian (quorum mínimo para iniciar-se uma oração). Seus nomes eram Hieronymo Freire, Fernão Dias, Diogo Carlos, João Alvares, Duarte Palacios, Rui Fernandes Cardoso e seus três filhos André Rodrigues, Fernão Rodrigues e João Gomes.

Em Hamburgo, Alemanha, ainda esteve com a família Pires, formada por comerciantes lisboetas que imigraram à cidade portuária: Álvaro Pires com seu filho Simão Francês e Jorge Brandão com seu filho Rodrigo Pires.

Em Flandres Vicente Furtado hospedou-se na residência dos irmãos Aenrique de Lima (casado com Beatriz Antunes e pai de Duarte de Lima) e Diogo Gonçalves de Lima, naturais de Braga, e que observavam os preceitos judaicos, e, quando ficavam em Hamburgo, “para guardar a Lei de Moysés”, hospedavam-se na casa da família Milão, originária de Alcântara perto de Lisboa. Era amigo de Fernão Lopes Milão, 31 anos, e que juntos foram presos em 28 de Outubro de 1606 quando tentavam embarcar para Hamburgo.

A genealogia dos Milão também faz parte do processo da Inquisição 3.333. Em Lisboa Vicente Furtado ficava na casa dos irmãos Diogo Lopes Cardoso e Manuel Mendes Cardoso. A casa era frequentada por outros conversos como Jorge de Mattos, Diogo de Mattos, Thomas Pinhel, e, que lá se reuniam para manter as tradições judaicas; – Após percorrer a região das Beiras, Vicente Furtado chega a Coimbra onde se hospeda na casa de Simão Vaz, natural de Lamego, cujo tio se chamava Miguel Vaz e vivia em Nápoles, Itália.

Em Nápoles, Vicente era visitado pelo cristão novo Bento Pinhel, estudante de Direito que guardava tantos preceitos judaicos que o tabelião não conseguiu registrar todos eles por escrito. Certa vez andando pelo Rossio, Vicente encontrou-se com seu velho amigo o cristão novo Fernão da Luz e Mello, e, na conversa que se seguiu, teriam manifestado o desejo de “salvar-se na Lei de Moyses”. Vicente Furtado revelou também como o estudo do Judaísmo se propagava entre os conversos. Contou que recebera em Flandres, do converso Hierônymo Freire, um livro de Salmos e outro de orações em castelhano, e que depois passara os livros para Fernão Alvarez de Mello morador da capital.

Vicente Furtado contou também que outro lisboeta, Jorge Rodrigues enviara uma Bíblia a um amigo que vivia em Madrid, mas que era natural de Beira. Ao final do processo inquisitorial, Vicente Furtado foi julgado culpado e condenado à pena de “reclusão completa” ao longo da qual seria finalmente catequizado nas “Escolas Geraes” dos jesuítas portugueses.

Não se sabe durante quantos anos Vicente Furtado ficou preso, ou se saiu com vida da prisão. Não sabemos se casou nem se deixou descendentes.

Bibliografia

ANTT, Processo 3.333 da Inquisição de Lisboa (Vicente Furtado).

FAINGOLD, Reuven, Genealogy and Inquisition: The Trial of Vicente Furtado. GERAÇÕES BRASIL vol. 1, No. 1, outubro de 1994, págs. 6-9 (english-portuguese).