O Holocausto nas artes: os limites da representação

Este breve artigo aborda uma recente polêmica acerca da possibilidade de representar ou não artisticamente o Holocausto do povo judeu. Para a maioria dos estudiosos, há fronteiras intransponíveis. Outros escritores aceitam com extrema facilidade a possibilidade de representação da maior catástrofe da humanidade. Mesmo tratando-se de um debate entre intelectuais, é necessário penetrar nessa profunda reflexão que traz importantes desdobramentos morais e éticos.

Palavras-chave: Shoah. Arte. História.

Abstract: This short article deals on a recent polemic about the possibility to represent or not the Holocaust of Jewish People in Arts. For most researchers there are unbridgeable frontiers to represent the Holocaust although there are some that accept easily all kind of representation on the biggest catastrophe of Humanity. At the same time that there is a debate between intellectuals is necessary to reach far into a deep reflection concerning the moral and ethics consequences of this tragedy.

Keywords: Shoah. Arts. History.

Introdução

O Holocausto do povo judeu (1933-1945), cruel e sistemático, vem despertando enorme interesse, gerando uma quantidade fantástica de propostas artísticas e aproximações historiográficas. Tanto o cinema, quanto o teatro, as artes plásticas, as exposições e os projetos educativos, levantam a polêmica acerca dos limites da representação da Shoah, ou seja, as fronteiras em que a representação da morte em escala industrial pode ser utilizada como referência de peso e singularidade.

A afirmação do cineasta francês Claude Lanzmann de que “o Holocausto como acontecimento histórico é único por demarcar um círculo de fogo em torno de si mesmo, um limite que não é lícito transgredir”, ensina que representar essa tragédia será um grande desafio. As palavras do cineasta induzem a pensar que o genocídio nazista não permite qualquer comparação, mesmo ao tentar discuti-lo por intermédio da arte, da literatura e da história. Para ele qualquer deslize na representação estética poderá ecoar como um “erro grave”, uma manifestação de mau gosto ou, inclusive, uma traição à memória das vítimas. Portanto, como já escreveu Imre Kertész, existe um determinado modelo fixo de Holocausto e todo um sistema de impedimentos, tabus, relacionados com a sua representação.

Mas, os tabus, as transgressões, a proibição representativa e a violação da memória não tem andado ultimamente de mãos dadas. O debate em torno da (im)possibilidade de representação faz parte da própria memória do Holocausto. É um debate que surge, principalmente, como resposta crítica aos acontecimentos descritos pela mídia, como a própria banalização da memória. Afinal, onde podem ser fixados os limites da representação? Essa é uma pergunta ainda sem resposta. Trata-se de uma
fronteira invisível e imprecisa. Muito além das várias idéias e opiniões abordando o tema Holocausto, certos escritores trabalham a partir da irreverência, da argumentação trivial e até da profanação.

Então, o que é lícito ou proibido, o que é apropriado ou inapropriado representar?

A seguir, serão analisadas algumas justificativas que norteiam os limites ou tabus na representação estética, artística e visual do Holocausto. Esse exercício objetiva permitir uma indagação acerca do que é apropriado e inapropriado em certos gêneros como também captar as interpretações da cultura contemporânea na reconstituição das denominadas “memórias do horror”, dos passados traumáticos e da consolidação artística de profundas cicatrizes na memória coletiva dos povos.

Finalmente, o debate em torno da memória do Holocausto levanta questões teóricas e debates epistemológicos, geralmente vinculados com a veracidade das fontes históricas e o valor cognitivo da representação estética. Os limites da representação do Holocausto são, também, os limites da memória do horror.

1. A irrepresentabilidade da Shoah

O que é um limite de representação? Os termos “representação” e “limite” possuem, geralmente, significados antagônicos. A noção de representação implica sempre uma opção, uma via, uma escolha. Não existe uma representação sem a possibilidade de outra. A primeira vista, a representação da Shoah não difere da representação de qualquer outro acontecimento histórico. Não passaria de um problema de mediação entre o referente, passado na Europa entre 1933-1945, e a expressão interpretativa concreta desse passado. Porém, na representação da Shoah, as opções tomadas pelo artista, cineasta ou historiador na concretização deste referente se vêm afetadas pela dimensão dramática específica.

Como explicar a forma com que o artista é influenciado ao representar? Ele é afetado pela proximidade dos acontecimentos, tanto temporal como cultural, por seu extraordinário alcance e pela violência e brutalidade sem precedente nos anais da humanidade. A partir deste caráter único e monstruoso vem-se construindo a tese da “irrepresentabilidade do Holocausto”. Essa tese analisa o Holocausto do povo judeu como possuidor de uma natureza ímpar, que foge a qualquer forma de representação.

O filósofo Yeshayahu Leibowitz (1903-1994), por exemplo, utilizou a poderosa metáfora do terremoto para explicar as dificuldades em entender “o planeta Auschwitz”. Ele descreve um terremoto intenso que destruiu indiscriminadamente todos os instrumentos de medida. Já o escritor judeu Elie Wiesel, sobrevivente dos campos nazistas, com muita sensibilidade literária, busca explicar Auschwitz como um acontecimento totalmente distante da história, um mistério que apresenta desafios ainda enigmáticos para a mente humana.

Mas, para boa parte dos historiadores, o Holocausto se encaixa perfeitamente entre aqueles “acontecimentos dentro dos limites”. Segundo Saul Friedlander professor da Universidade de TelAviv, tratando-se do caso mais radical de genocídio da História, sistemático, industrializado e sucedido, o Holocausto “coloca em julgamento nossas categorias conceptuais e representativas tradicionais”. Diferente de outros genocídios precedentes, expurgos de Stalin na URSS e dos armênios pelos turcos, o Holocausto do povo judeu se desenvolveu à margem de qualquer forma de
racionalidade. Isso, por si só, o coloca, segundo Dan Diner, “muito além de nossas categorias racionais”. Na sua crônica “Um exercício de imaginação”, o escritor Moacyr Scliar afirma que “a sensação de aniquilamento iminente não faz parte da nossa experiência existencial. A cifra das vítimas, os seis milhões, escapa de nossa possibilidade concreta de figuração”. Tanto para Diner como para Scliar, a Shoah está localizada fora de toda disponibilidade cognitiva.

Dominick LaCapra, conceituado historiador norte-americano, sustenta a tese que o Holocausto foi um acontecimento além dos poderes da imaginação e da conceitualização. As próprias vítimas não conseguiam sequer acreditar naquilo que estavam vivenciando. Elas confirmam, desse modo, o forte problema de representação. O extermínio se apresenta diante dos prisioneiros como algo carente de sentido. O escritor austríaco e membro da resistência nazista na Bélgica Jean Améry (1912-1978), chegou a afirmar: “A tortura foi a essência do Terceiro Reich, para alguns, testemunhar parecia algo inimaginável”.

Os autores mencionados citam a difícil correlação entre o singular fato histórico (Holocausto) e sua expressão diante do terror e a angústia. Sem dúvida, as características da Shoah como objeto, criam um diferenciado na hora da representação. A morbidade do Holocausto, por sua vez, exclui possibilidades nas formas de representação. Estas exclusões e limitações afetam em certa medida as diferentes áreas desde os quais virá a tentativa de representação, sejam estas a literatura, a história, a arte, o cinema e a epistemologia.

2. O dilema da arte

No clímax da expressão artística, o debate acerca da legítima representação do Holocausto remonta à frase do filósofo e sociólogo alemão Theodor Adorno, “Nach Auschwitz ein Gedicht zu schreiben ist barbarisch”, lembrando a todas as criaturas a impossibilidade de escrever poesia depois de Auschwitz.

Adorno (1903-1969) duvida da existência do conceito de beleza após o acontecido nos campos de extermínio. Para ele “a árvore que floresce também mente no instante em que percebemos seu desabrochar à sombra do terror”. A fórmula adotada “depois de Auschwitz” representa um divisor de águas. Existe um antes e um depois de Auschwitz. A ideia de que a poesia e a arte em geral possuem uma dimensão de prazer se opõe à ideia de genocídio, um ato de pura barbárie para Adorno. Sendo assim, não poderá haver estética enquanto houver sofrimento e vítimas.

Mas, por outro lado, Adorno faz da lembrança de Auschwitz uma nova necessidade, uma nova categoria de pensamento. À primeira vista, ambos os conceitos, poesia e Auschwitz, parecem excludentes. Se há poesia não há morte. Ou seja, proibir a arte e, ao mesmo tempo, perpetuar a memória são atitudes excludentes. A representação do Holocausto do povo judeu está enquadrada em dois conceitos paradoxais, sustentados por pilares irreconciliáveis: a obrigação de lembrar e a proibição de representar.

A consolidação de uma memória coletiva do Holocausto estaria, portanto, atrelada a um preceito moral que rejeita toda expressão artística, pois, afinal, qualquer prazer estético nascerá completamente “em litígio” com a memória do Holocausto.

Ao definir limites rígidos em sua realização, a dupla arte-memória acaba por levar, de forma permanente, à transgressão. O Holocausto foi retratado ad nauseam e seus protagonistas também. Poder-se-ia solicitar à memória que renunciasse ao extraordinário potencial da arte? Claro que não. Mesmo em sua repetida transgressão, a sombra da memória recai sobre toda forma de representação. A memória é a chave para poder interpretar as críticas à produção artística sobre o Holocausto; sejam estas oriundas do cinema, das artes plásticas, da novela.

3. A busca da verdade histórica

O significado da palavra “inexpressável”, legítimo em outras circunstâncias, não parece facilmente transferível ao campo do historiador. Para ele, como para o estudioso das ciências sociais, denominar um acontecimento histórico de inexplicável ou indescritível parece impensável. Mesmo assim, a história como disciplina reveladora, não fica à margem dessa problemática. O historiador encontra, também, suas limitações na representação do Holocausto, limites demarcados pela própria busca da
verdade.

Na história do Holocausto, registra Saúl Friedlander, “a procura iminente da verdade é um imperativo”. Essa primeira exigência, cuja formulação parece quase tautológica, oculta uma explicação que transcende o obvio. Em primeiro lugar, a inquietude provocada entre os historiadores sobre o Holocausto direcionou a pesquisa metodológica para as denominadas teses negacionistas, muitas delas duvidando inclusive do extermínio do povo judeu. Essas vozes surgem, geralmente, em círculos minoritários de extrema direita, pseudocientíficos, que se revelam sob o eufemismo de “revisionismo histórico”. Esses grupos acabam gerando um intenso debate sobre a verdade na representação histórica do Holocausto.

Em segundo lugar, o auge do relativismo pós-moderno na historiografia, que coincidentemente age junto ao fenômeno negacionista, questiona toda a noção de verdade histórica. Negar ou impugnar qualquer relação entre os fatos históricos e seus elementos constitutivos criam uma disparidade na valoração da verdade. Em outras palavras, é verdade que Hitler matou seis milhões de judeus na Europa, mas também é verdade que Stalin eliminou 13 milhões de inimigos do regime comunista russo.

O exemplo mencionado ilustra a forma como o relativismo tomou conta da história e, consequentemente, abalou o significado da memória. Assim, a historiografia relativista, e pósmoderna, apresenta um desafio crucial na tentativa de representar a verdade histórica num fenômeno tão brutal como o Holocausto. A idéia de “desconstrução da história” não só possibilita transgredir e negar o Holocausto judaico, como também incorpora o que poderíamos denominar de “transgressão interpretativa”.

Segundo a “desconstrução historiográfica”, não há critérios metodológicos nem teóricos para estabelecer que uma interpretação é mais certa do que a outra. O relativismo enfatiza o conhecimento localizado nas perspectivas a partir das quais se chega à compreensão do passado. Pode-se, desse modo, entender o Holocausto a partir do olhar das vítimas ou a partir do olhar dos carrascos, ou, ainda, dos libertadores dos campos de extermínio. Esse relativismo de perspectivas certamente dilui a singularidade histórica do genocídio dentro de um contexto de guerra, de crimes de guerra, deportações da população alemã, bombardeios dos aliados. Dessa forma, as culpas e as responsabilidades exclusivamente atribuídas aos nazistas no passado poderão dividir-se entre outros envolvidos e, assim, naturalmente, a tendência de obter uma única representação do Holocausto poderá estilhaçar-se em pequenos fragmentos.

As últimas pesquisas dos historiadores conservadores tentam demonstrar que o Holocausto possui um papel relativo entre as grandes tragédias da primeira metade do século 20. Ernest Nolte chegou a afirmar “Sem Gulag não haveria existido Auschwitz”, tentando dizer que os crimes nazistas não passavam de uma réplica do extermínio exercido pelos bolcheviques na URSS. Nolte, todavia, não é o único pesquisador a diluir o Holocausto. Andréas Hillgruber escreve acerca dos esforços heroicos de soldados no front oriental para salvar os alemães dos atos “vergonhosos” do Exército Vermelho na sua empreitada rumo ao oeste para libertar Europa. Sua frágil teoria esvazia da memória alemã as centenas de milhares de judeus assassinados sem compaixão nos campos de extermínio.

O caminho trilhado por Andréas Hillgruber foi seguido por Alexander Kluge e Jörg Friedrich. Ambos registram o sofrimento da população alemã durante os bombardeios aliados, fato que, inevitavelmente, desvia o foco das vítimas do Holocausto. As implicações políticas desse enfoque são evidentes e reforçam o argumento daqueles alemães que desejam liberar-se a todo custo do estigma de Hitler e da mácula de Auschwitz. Afinal, essas manchas pesam na História e impedem o restabelecimento de uma identidade nacional alemã.

Os relativistas, revisionistas ou negacionistas poderão diluir a verdade histórica, mas, é fato, no entanto, que resulta inegável estarem adotando uma perspectiva que ultrapassa e profana os limites da representação. Elie Wiesel denunciou essa transgressão de forma brilhante: “Estamos vivendo um período da dessantificação do Holocausto. Na Alemanha de hoje, historiadores acham uma explicação aos crimes de Hitler agrupando-os com os de Stalin”. Assim, como já foi dito, o Holocausto do povo judeu, por sua singularidade moral, como também por sua difícil representação, dá ênfase ao eterno problema da busca da verdade na história.

4. A comercialização da memória

Frequentemente, as representações do Holocausto trazidas pelo cinema e pela televisão são tidas como o estopim da polêmica sobre os limites reais da representação da Shoah. A técnica audiovisual condiciona gradativamente o homem ao prazer narrativo e ao prazer visual, prazer este afetado pela frase de Adorno na qual alertava acerca da “impossibilidade de escrever poesia após Auschwitz”.

O cinema como forma de expressão artística é o primeiro a transgredir o limite da representação do Holocausto: a proibição de estetizar o horror. Mas, além disso, as produções cinematográficas e televisivas têm pretensões descritivas e interpretativas. A possibilidade de uma representação “adequada” (fidelidade e proximidade da realidade retratada) fica bastante reduzida quando existe uma preocupação acerca dos limites do artístico e do histórico.

Porém, há outros elementos de forte peso que também impõem limites. O cinema e a TV pertencem à indústria da cultura e este vínculo anularia toda sua legitimidade para representar o Holocausto. O escritor Umberto Ecco chega a falar inclusive de uma “perspectiva apocalíptica da cultura de massas” que vem condicionando negativamente a percepção das produções audiovisuais sobre o Holocausto.

Para Adorno, Horkheimer e Marcuse, a comercialização da cultura é sinônimo de “desmemoria”, uma afronta à memória, uma vez que converte todo sentido real de história em espetáculo e entretenimento. Sustentados numa e afinados com a estética da mercancia, produto, e a dramaturgia do anúncio, os seriados de TV e os filmes de Hollywood estariam totalmente impossibilitados de assumir tarefas de esclarecimento, educação ou conscientização sobre a memória do Holocausto.

A intenção dos seriados e filmes tem duas propostas antagônicas: a primeira, tende a apostar na compreensão racional e cognitiva dos fatos históricos apresentados; e a segunda, intenta apelar às emoções por intermédio dos meios de comunicação de massas, bloqueando toda possibilidade de reflexão crítica e, paralelamente, prejudicando a imaginação histórica da audiência.

A escola de Frankfurt não adverte apenas para o perigo da comercialização da cultura, mas atribui às formas de expressão artística o poder de deturpar e confundir a linha divisória entre a ficção e a realidade. A isso eles denominam manipulação ideológica.

O seriado “Holocausto” (1978), por exemplo, dividido em nove capítulos e protagonizado por Meryl Streep e James Woods, surgiu precisamente para dar início ao debate sobre a legitimidade de representação do acontecimento mais traumático do século 20. Desde então, essa discussão vem adquirindo um componente essencial na memória da Shoah, dando origem a novas representações cinematográficas e televisivas sobre o tema.

5. A estética na representação da Shoah

O apelo pela estética na arte, a encruzilhada epistemológica e o pudor diante da banalização da memória nos meios audiovisuais, constituem os três pilares pelos quais transita o debate teórico sobre a possibilidade de representação da Shoah. Trata-se de limites, proibições e delimitações que toda proposta deve afrontar, aceitar e tentar desafiar de alguma maneira. Porém, ao tempo que alguns pensadores destacam o caráter sagrado e único do Holocausto; poucos estão plenamente convencidos da necessidade de representá-lo, quiçá por não saber o que seria justo, ou talvez ético, ou injusto representar. Estes últimos geralmente perguntam: quais elementos deformam, minimizam ou banalizam o Holocausto? Que critérios permitem diferenciar o que resulta apropriado ou inapropriado na representação? Qual seria a escolha certa para obter sucesso ou fracasso na representação? Tratando-se de uma tragédia, por onde passaria o limite entre a ética e a estética?

Tais perguntas são aparentemente fáceis de serem respondidas, no entanto, não há dúvida de que esses limites são imprecisos, flexíveis e cambiantes. Tampouco podem ser vistos como limites científicos, estritamente ideológicos, nem meramente estéticos. Eles não afetam apenas as representações em si mesmas, mas também afetam seus autores e o contexto de sua receptividade. Em outras palavras, eles são relevantes por indicar como se representa o Holocausto, quem o faz e para quem é feito. Algumas questões relacionadas à representação convencional do Holocausto são temas cada vez mais questionados no campo da arte e da historiografia.

6. Transmitir pelo silêncio

Na introdução a uma das obras mais importantes sobre o cinema de ficção e o Holocausto, Elie Wiesel faz referência a um dos mestres do Chassidismo, o rabino de Kotzk, dizendo: “Há verdades que podem ser transmitidas por intermédio da palavra; e há verdades muito mais profundas que somente podem ser transmitidas pelo silêncio, e num outro estágio aparecem àquelas verdades que não podem ser transmitidas sequer pelo próprio silêncio”. Logo depois Wiesel adicionou que “mesmo assim, precisam ser comunicadas”. Com esta frase metafórica do rabino, Wiesel defende a irrepresentabilidade do Holocausto. A idéia do silêncio sendo a única postura epistemológica aceitável diante da magnitude e unicidade dos acontecimentos do Holocausto é uma constante na abordagem sobre o assunto.

Mas, qual é o silencio ao qual nos remete Wiesel? Esse silêncio expressa a impossibilidade de comunicar a experiência da Shoah a todos àqueles que não a viveram. O silencio se impõe. Vãs foram todas as tentativas de estabelecer uma ponte diante de uma realidade que está além do cognitivo, ou seja, do processo de explicação e compreensão.

O filósofo alemão Emil Fackenheim disse também que “toda escrita sobre o Holocausto é refém de um grande paradoxo: o acontecimento deve ser comunicado, porém ele é incomunicável. O escritor deve aceitar o paradoxo e resistir a ele”. Esse silêncio não é fruto do esquecimento nem do fracasso da comunicação, mas ele é uma linguagem.

“Toda a obra de Wiesel está impregnada do silêncio como o fruto que a criou”, conclui o filósofo francês André Neher. A irrepresentabilidade do Holocausto é, para Wiesel, uma linguagem em si, certamente uma outra maneira de expressar ou representar a Shoah. É uma linguagem que introduz em seu interior um elemento de retórica eficaz. As obras de Wiesel e os testemunhos dos sobreviventes são exemplos cruciais de uma inguagem alegórica, indireta, que pode ser denominada
de “silêncio”; mas, definitivamente, são eles os que sustentam a tensão positiva entre silêncio e palavra.

7. A proibição da imagem

Desde épocas antigas, a relação entre ver e conhecer tem encontrado terreno fértil ao abordar o tema da representação. O Holocausto reabre a discussão sobre essa relação e levanta um problema de caráter moderno: o problema dos limites cognitivos, morais e estéticos da transmissão do conhecimento acerca dos horrores retratados pela fotografia e o cinema.

As imagens do Holocausto possuem um significado espetacular e acarretam riscos de fascinação. “A fotografia introduz o escândalo do horror, mas não ao horror mesmo” afirmava Roland Barthes em Mitologias. Esse risco é fator recorrente no debate sobre os limites da representação do Holocausto. Tal risco centra-se no dilema entre a verdade histórica e as lembranças da memória, ou como afirma Vicente Sanchez Biosca, “entre a ética do olhar e a estética da representação”.

Num primeiro momento, a proibição de publicar as numerosas imagens sobre a libertação dos campos de concentração sustentava-se num critério meramente estético que relutava em mostrar de forma realista um horror de enorme magnitude. A justificativa era clara: as vítimas do Holocausto tinham sido desapropriadas e esvaziadas de sua dignidade e humanidade como pessoas. Elas seriam, pela exposição, “revitimizadas”, ou seja, castigadas pela segunda vez, pois afinal elas já eram vítimas.

Num segundo momento, discutiu-se a força das imagens. Para muitos, essas impressionantes imagens bloqueiam a capacidade de raciocínio do espectador. Há uma reticência explícita ao se divulgar fotografias tomadas pelos próprios alemães. Um tipo diferente de atitudes críticas em relação às imagens e a representação do Holocausto surgem, no entanto, nos seriados de TV e nos filmes lançados em circuitos comerciais. As produções são acusadas de quebrar a noção verídica do que foi o Holocausto e de violar a zona liminar da compreensão humana definida por “limites”. A ficção sobre a Shoah, desse modo, penetraria nesse âmbito sagrado ao tentar reconstruir e recriar o horror com cenários e atores. A rejeição acontece uma vez que nada vai ser deixado de lado, tudo vai ser mostrado.

O filme documental, por outro lado, apresenta os chamados problemas da imagem literal, decorrentes da fotografia e da imagem de arquivo. Este é o dilema de Claude Lanzmann: invocar a memória por intermédio de testemunhas e não só com imagens explícitas. Seu documentário Shoah, de nove horas de duração, estabelece, de forma surpreendente, os limites da representação. Esses limites são os da imagem documental e da ficção. A ficção é, para Lanzmann, uma transgressão, pois ele sabe que há certas coisas que não podem e não devem ser representadas.

Lanzmann fala frequentemente da “obscenidade de compreender”, fazendo uma alusão ao espaço existente entre a própria imagem e a realidade sujeita à representação. Para ele, não existe um elo entre a representação do Holocausto e a experiência do Holocausto. Haveria, pois, um profundo abismo que não deve ser atravessado. Prescindindo de imagens históricas dos acontecimentos e baseando-se quase por completo em entrevistas e testemunhos, Shoah penetra nos limites do permitido, daquilo que pode ser representado. O próprio conteúdo do filme força o espectador a procurar – dentro de sua própria mente – as imagens. No artigo “Holocauste, la répreséntation imposible” (Le Monde, 03/03/1994), Lanzmann afirmou: “Se tivesse achado imagens autênticas das câmaras de gás, não só que não as utilizaria, mas as teria destruído”.

Shoah constitui-se como uma referência obrigatória na reflexão acerca da representação do Holocausto e, também, como instrumento essencial para medir toda a produção visual ou áudiovisual sobre o tema.

8. O discurso da sobriedade

A utilização de um gênero sério e discreto, vinculado à noção convencional de verdade e realidade, é o elemento que vem prevalecendo na discussão acerca da representação da Shoah. A singularidade dos fatos obriga, assim, a uma tentativa de se optar por um conjunto de formas e gêneros pertencentes ao discurso histórico, objetivando-se deixar de lado a ficção, a dramatização e todo vestígio de experimentação estética.

O discurso histórico tradicional considera perigosa qualquer representação estética ou qualquer tipo de linguagem figurativa, pois, geralmente, elas tendem a adicionar “algo” ao objeto retratado; reduzindo e escurecendo aspectos do próprio acontecimento, focando a atenção no autor e impedindo que os fatos falem por si mesmos. Ambos, a linguagem figurativa e a representação estética, negariam, portanto, o conteúdo específico e a individualidade do Holocausto.

Sendo assim, no campo da literatura, a preferência recai na crônica curta, no testemunho ou na autobiografia. No âmbito do audiovisual, a preferência estará na escolha do documentário em detrimento do cinema de ficção ou do seriado de TV. Já no caso dos museus, o gosto recairá nas fotografias, documentos e objetos, deixando de lado as cenografias, dramatizações e recreações. Ou seja, os chamados “discursos da sobriedade”, sempre relacionados com o real, com o imediato, tendem a ser os preferidos dos autores e do público. As posições estéticas e epistemológicas sobre o tema da Shoah são bastante paradoxais. Por um lado, autores como Lawrence Langer e Aharão Appelfeld argumentam que o Holocausto desafia uma realidade empírica, demandando uma desfiguração artística e, por outro, Lanzmann afirma que somente a arte pode resolver o dilema entre o silencio piedoso e a banalização obscena.

Recentemente, tanto nos documentários da TV, quanto nas exibições museológicas e abordagens historiográficas, proliferam recursos híbridos em que os gêneros da ficção e os discursos da sobriedade se mesclam. Ambos estão compostos por elementos retóricos e poéticos, sendo seu objetivo principal retratar a verdade, recorrendo, para isso, necessariamente, à arte e ao artifício.

9. As testemunhas e seus depoimentos

A busca de uma forma de representação que respeite os limites comentados, sem deixar de passar a realidade da Shoah, parece achar sua resposta no depoimento das próprias testemunhas. Nos últimos 15 anos, os depoimentos e os testemunhos dos sobreviventes como mediadores, e interlocutores, vem transformando-se em verdadeiros fenômenos sociológicos.

A publicação e a tradução de memórias, autobiografias, projetos de memória oral e gravação de depoimentos biográficos em vídeo; a constante presença de sobreviventes em atos comemorativos e educativos, a produção de documentários; parece confirmar que as testemunhas e seus depoimentos podem preencher o estreito espaço tão pressionado por restrições que emanam das representações da memória.

A testemunha foge da estetização das imagens, da recriação e da visualização do irrepresentável. Diante do realismo das imagens explícitas, a testemunha da Shoah, mais do que representar, evoca um momento. Fazendo oposição à dramatização dos fatos, a testemunha aparece como se estivesse participando de um encontro com suas pegadas, sua resistência e seu presente.

Depoimentos de testemunhas estão repletos de algo que se pode denominar “força presencial”, a rigor, a fonte da verdade histórica, sendo, desse modo, detentora do real poder de evocação pessoal do sobrevivente. Pode-se dizer que, o depoimento das testemunhas apresenta uma alternativa produtiva aos problemas anteriormente mencionados.

O depoimento do sobrevivente se situa no meio do caminho entre a história e a literatura, entre a memória e a arte. Essa ambivalência entre objetividade e expressividade, entre literal e poético, constitui a força para se tentar compreender a realidade do Holocausto. Portanto, enquanto houver uma testemunha, as representações da Shoah parecem dever coincidir com a representação histórica na medida em que sua narrativa só poderia realizada a partir de uma única perspectiva, a de suas
próprias vítimas.

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