O imigrante judeu na arte de Knispel

Quem foi Gershon Knispel?

A vida de Gershon Knispel (1932-2018) nunca foi fácil. Em 1935, durante o governo de Hitler, sua família deixou Alemanha estabelecendo-se na Palestina Britânica. De origem judaica, passou sua adolescência no convívio com árabes. Em dias tumultuados no Oriente Médio, os britânicos abandonavam a região. Resultado disto, a ONU votou pela “Partilha de Palestina” (29/11/1947), criando um Estado judeu e outro árabe.

Em 1957, depois de superado o difícil período da formação de Israel; Knispel viajou ao Brasil, estabelecendo-se em São Paulo. Lá trabalhou como artista plástico até 1964, retornando a Israel depois do golpe militar. Os poucos anos do Brasil foram suficientes para criar uma sólida ligação com a população local e também para consolidar sua carreira artística, através de diversas obras, algumas ainda visíveis na capital paulista.

Em 1958, o jornalista Assis Chateaubriand (1892-1968) o convidou para fazer um painel no edifício da TV Tupi de São Paulo, a primeira emissora de televisão do Brasil. No prédio, Knispel usou uma técnica novíssima para a época – o agregado mineral jateado – criando uma espécie única de mosaico nas paredes externas da emissora. Esta obra permanece conservada no alto do prédio que abriga o MTV, um canal aberto com grande audiência entre o público jovem.

Nos anos 60 e 70 Knispel continuou sua trajetória artística percorrendo o mundo com sua mensagem de paz. Ele sempre defendeu o convívio entre árabes e judeus em Israel. Há poucos anos trouxe ao país uma mostra de desenhos produzidos por crianças israelenses e palestinas em torno do tema da paz.

Sua arte tem um acentuado apelo político, sobretudo aquelas obras feitas em Haifa, lugar onde mantinha segunda residência. Entre os monumentos existentes nesta cidade portuária, encontram-se hoje “A Queda do Terceiro Reich” e o “Memorial do Soldado Desconhecido”. Também é autor do “Memorial Hana Szenes” no Centro Cultural do Kibutz Yad Hana, realizado em homenagem à paraquedista judia alistada aos Aliados para combater a ocupação nazista. Em São Paulo, Knispel é autor de uma escultura metálica na “Praça Cinquentenário do Estado de Israel (1948-1998)” localizada no bairro de Higienópolis.

Arca e dilúvio

A história de Arca de Noé (Gênesis 6-9) apresenta D´us triste com o mau comportamento da Humanidade e decidido a inundar a Terra e destruir todo vestígio de vida. Mas, o Criador achou um homem justo, “um homem virtuoso, inocente entre o povo de seu tempo”, e decidiu que este iria preceder uma nova linhagem humana.

Noé é solicitado a construir uma Arca e levar sua esposa, três filhos Shem, Ham e Japheth, e suas respectivas noras. Ainda colocou na Arca seres vivos de cada espécie, machos e fêmeas. Knispel não retratou o momento em que os animais entram na Arca. Noé, família e animais entraram lá, mas “passados sete dias foram quebrados todos os fundamentos da grande profundidade e as janelas do céu foram abertas, e a chuva caiu sobre a terra por quarenta dias e quarenta noites”. Esta inundação cobriu as montanhas, todas as criaturas morreram, e só Noé e aqueles que com ele estavam ficaram com vida.

A história do Grande Dilúvio é considerada pelos estudiosos como um sistema de dois contos diferentes e entrelaçados, daí a incerteza quanto à duração da inundação (40 ou 150 dias) e o número de animais colocados a bordo (dois de cada espécie, ou sete pares de alguns tipos). Em relação à inundação a Bíblia narra que choveu 40 dias e 40 noites, e que depois parou. Mas as águas permaneceram sobre a terra por 150 dias. Logo D´us lembrou-se de Noé e dos que estavam com ele na Arca, e fez soprar um vento para abaixar as águas. Em relação aos animais o texto registra que foram dois de cada espécie dos animais impuros, e sete pares das espécies dos animais puros.

Gershon Knispel não parece preocupado de como a Arca veio encalhar sobre o Monte Ararat. Basta saber que as águas começaram a diminuir e os topos das montanhas emergiram. Logo Noé enviou um corvo e ele “voou de um lado a outro até que as águas recuaram a partir da terra”. Em seguida, enviou uma pomba, mas ela retornou sem ter achado lugar adequado para pousar. Depois de mais sete dias, soltou novamente uma pomba retornando à Arca com uma folha de oliveira no seu bico, claro sinal que as águas tinham abrandado.

Finalmente, todos saíram da embarcação. Noé fez um sacrifício a D´us, e Ele prometeu que nunca mais lançaria uma maldição sobre a terra por causa do homem. A fim de lembrar-se da promessa, D´us colocou a Arca nas nuvens, dizendo (Gênesis 9:12-17): “Sempre que houver nuvens sobre a terra e o arco aparecer nas nuvens, eu me lembrarei da eterna aliança entre D´us e todos os seres vivos de todas as espécies sobre a terra”. Knispel inseriu a pomba de Noé em um fundo de letras hebraicas, mostrando a legitimidade do episódio bíblico.

A simbologia da Arca

Na escultura de Knispel “Pomba de Noé com ramo de oliveira no bico”, Noé representa o protótipo do homem justo. A personagem é objeto de rica discussão na literatura rabínica. Nossos sábios perguntam: Será que Noé foi o único justo de toda uma geração de perversos? De acordo com a tradição judaica havia apenas duas pessoas que praticavam justiça aos olhos de D’us: Noé e sua mulher Naamá. Ambos ensinaram seus filhos a serem igualmente justos. Quando Noé percebeu que seus vizinhos eram maldosos, raciocinou: “Se permanecer próximo a eles, também me tornarei perverso pelo convívio”. Assim, pouco antes da inundação, chegou a advertir os pecadores sobre o dilúvio, mas de nada adiantou.

A fim de garantir Noé e sua família, D´us colocou leões e animais ferozes para proteger os puros dos impuros. De acordo com um midrash, foi o Todo-Poderoso quem reuniu os animais na Arca, juntamente com seus alimentos. Precisando fazer uma distinção entre animais limpos e imundos, os limpos se deram a conhecer reverenciando Noé à medida que entravam na arca. Uma opinião diferente explica que a Arca sabia distinguir entre animais puros dos impuros, admitindo sete dos primeiros e dois dos segundos.

Noé se encarregou dia e noite da alimentação dos animais, e não teve sono pelo ano inteiro a bordo da Arca. Os animais selecionados foram os melhores de suas espécies e comportavam-se com extrema bondade. Eles se abstiveram de procriar a fim de que o número de criaturas que desembarcasse em terra fosse exatamente igual ao número que embarcou. O corvo criou alguns problemas, negando-se a sair da Arca e acusando Noé de querer destruir sua raça.

Os refugos foram armazenados no mais baixo dos três pavimentos, seres humanos e animais limpos sobre o segundo, e os pássaros e animais impuros no topo. Uma opinião diferente situou os refugos no pavimento mais alto, de modo que podiam ser jogados ao mar através de um alçapão. Pedras preciosas, brilhantes como meio-dia, providenciaram luz e D´us assegurou que os alimentos frescos fossem mantidos. O gigante Og, rei de Bashan, esteve entre os salvos, mas, devido a seu tamanho, teve que permanecer fora, passando-lhe Noé alimentos através de um buraco na parede da Arca.

Para Gershon Knispel o dilúvio foi um castigo divino, uma punição celestial. O dilúvio ainda representa a turbulência e o caos, a essência da desordem. Esta é a maneira que o artista encontrou para descrever as numerosas tribulações e perseguições do povo judeu.

A pomba e o exílio

A pomba de Gershon Knispel é peculiar, ela carrega dentro de seu corpo o exílio do povo judeu. É o exílio (galut) imposto após a destruição do Segundo Templo (70 d.C), marco especial e significativo na historiografia judaica. A queima de Jerusalém e a profanação do Templo pelos exércitos romanos permitiram a chegada dos judeus à Europa e às várias comunidades espalhadas mundo afora. Por gerações, o velho continente destilará seu veneno através do “ódio gratuito” contra os judeus.

A pomba de Knispel traz em seu corpo numerosos triângulos com datas e nomes dos países que perseguiram ou expulsaram judeus. Também notamos triângulos totalmente vazios; uma espécie de “licencia artística”, destinada a relembrar que ainda há outras tantas comunidades que foram perseguidas, mas não constam na escultura. Ao observar os países, é fácil perceber que as políticas antijudaicas foram aplicadas especialmente durante a Idade Média, quando a Igreja católica detém sua hegemonia na Europa. Entre os países representados pelo artista estão: Inglaterra (1290), França (1305), Espanha e Sicília (1492), Nápoles e Portugal (1496) e a Lituânia.

Uma explicação especial merece Portugal (1496), umbilicalmente ligada à História do Brasil. É o período do rei Manuel I apelidado “O Venturoso” (1469-521), o monarca responsável pelas conversões forçadas dos judeus. Relembra-se aqui o episódio dos judeus “batizados em pé”, resultado direto do Édito de Expulsão dos Judeus de Portugal (04/12/1496), no qual se outorgam seis meses para adotar o Catolicismo ou abandonar definitivamente as fronteiras do país.

O caso da Inglaterra é também curioso. Os judeus foram expulsos em 1290 voltando entre 1649-1656 durante o Ressettelment, o retorno permitido pelo Parlamento britânico na gestão de Sir Oliver Cromwell. A pergunta que inquieta é a seguinte: Porque William Shakespeare em 1596 retrata com traços satíricos e irônicos o judeu prestamista Shylock na peça “O Mercador de Veneza”, quando na Inglaterra praticamente já não havia judeus? Costumo dizer que a presença judaica não precisa ser física, não há necessidade de ter judeus ambulando pelas ruas londrinas. Esta indesejável presença está consolidada no imaginário da intelectualidade e, certamente, Shakespeare é o melhor exemplo.

A frase de Habacuc

Na parte inferior da escultura de Knispel “Pomba de Noé com ramo de oliveira no bico” é possível encontrar um versículo bíblico em hebraico que desperta nossa atenção: “Ki even mekir tizak” (Habacuque, 2:11) ou seja: “Pois a pedra do muro clamará”. Qual o real significado desta frase retirada do Profeta Habacuque?

O texto de Habacuque é sucinto, complexo e misterioso. Possui um forte discurso exegético. Habacuque descreve-se a si mesmo como alguém que traz uma visão de D´us. Nesta visão, o Criador lhe mostra ao profeta tempos em que reinam a violência, a iniquidade e a injustiça. Trata-se de um momento em que a ilegalidade prevalece e não há temor a Deus. É um tempo em que homens justos são cercados por homens maus e não há nenhuma restrição do mal. O período de Noé é semelhante ao de Habacuque.

No “Memorial da Imigração Judaica e do Holocausto”, as palavras de Habacuque recebem novo significado. Descontextualizadas, as palavras configuram uma metáfora nebulosa e pouco compreensível.  Quem clamará? Quem gritará? Obviamente a pedra do muro não clama, não grita; pois não possui vida e muito menos, sentimentos. Porém, a ideia aqui é outra: Mesmo inerte, a pedra está sensibilizada e sofre com as perseguições aos judeus. A pedra dos Templos de Jerusalém clama pelo sangue derramado nos pogroms perpetrados contra as comunidades ibéricas e do Leste Europeu.

A pedra que acompanha a escultura “Pomba de Noé” de Knispel, ganha força e vigor com três pedras de tamanhos e lugares diferentes. A primeira pedra é pequena, importada da “juderia” espanhola de Segóvia, nos lembra as perseguições inquisitoriais sofridas pelos cristãos novos. A Inquisição ceifou a vida de milhares de judeus, gerando uma “diáspora hispano-portuguesa” e transportando conversos aos lugares mais recônditos da Europa, da Ásia e da África. Por volta de 1500, judaizantes são degredados ao Brasil nas frotas de Pedro Álvares Cabral.

A segunda pedra, maior em tamanho, fez parte do muro do Gueto de Varsóvia. Ela honra a memória dos seis milhões de judeus covardemente assassinados pelo Terceiro Reich e seus colaboracionistas durante o Holocausto entre 1933 e 1945. O mundo judaico perdeu na 2ª Guerra Mundial 1/3 de sua população.

A terceira pedra pertenceu ao Muro de Berlim que ruiu em novembro de 1989. A partir desta data, foram sumindo um a um os regimes comunistas da “cortina de ferro”, (URSS, Polônia, Hungria e Romênia); restando hoje os últimos vestígios de comunismo em Cuba e na Coréia do Norte. Nestes países, parceiros do eixo soviético, os judeus perderam suas liberdades; ficando impedidos de estudar a Torá, a língua hebraica ou mesmo de emigrar para o jovem Estado de Israel nascido em 1948 no fervor da Guerra Fria.

Palavras finais

Uma pergunta é fundamental para encerrar a nossa reflexão: Qual é a relação existente entre a monumental escultura de Gershon Knispel “Pomba de Noé com ramo de oliveira no bico” e a vida do imigrante judeu? Que procurava Noé durante o Grande Dilúvio? Que ofereceu Noé aos sobreviventes do Dilúvio?

Para responder devemos traçar uma analogia entre o Noé bíblico e o imigrante judeu. Homem justo, Noé buscava incessantemente uma terra firme para ancorar a Arca. Estava à procura de um porto seguro para depositar com segurança seus passageiros. Com a aparição do arco íris, o diluvio acabou. Desta forma, nascia uma nova geração de homens livres que deixava para trás maldosos e pecaminosos.

O imigrante de Knispel é Noé. Mesmo sendo um homem justo (tzadik), sofre perseguições afastando-se de sua nação. O imigrante judeu vive seus dias exiliado e busca de sua “Terra Prometida”, um porto seguro para recomeçar sua atribulada vida. Vive ansioso à procura de um lugar tranquilo, um canto sossegado onde possa aproveitar o restante de sua vida, longe das perseguições e das tribulações.

Resumindo, o Estado de Israel surgido das cinzas do Holocausto, fez com que milhares de judeus dispersos tenham hoje uma nova casa. Atualmente, há uma nova opção e cabe a cada judeu procurar sua Terra Prometida.

Bibliografia

Bailey, Lloyd R., Noah – the Person and the Story. University of South Carolina Press, South Carolina 1989.

Gênesis 7:10-24; Gênesis 8:1-17 e Habacuque 2:11

Noé, o pai da Humanidade. MORASHÁ 43, ano XI, Dezembro 2003, págs. 14-18.

Woodmorappe, John, Noah’s Ark: A Feasibility Study (El Cajon, CA: Institute for Creation Research), California 1996.

Young, Davis A., The Biblical Flood (Grand Rapids, MI: Eerdmans Publishing Company), 1995.

Knispel. Retrospectiva. 1ª edição. Editora Maayanot. São Paulo 2016.