O misticismo judaico – A controvérsia entre o mestre Gershom Scholem e seu discípulo Moshe Idel

Por mais de meio século, o estudo do ocultismo ou esoterismo judaico nas universidades ao redor do mundo foi dominado pelas teorias e abordagens de um homem só: o Prof. Gershom Scholem. Nascido Gerhard Scholem, este pesquisador judeu-alemão revolucionou a filosofia com seu brilhantismo e carisma. Migrou de Berlim para Jerusalém em 1923, e viveu lá até sua morte em 1982. Sua autobiografia “De Berlim a Jerusalém” (traduzida e publicada pela Editora Perspectiva em 1991), é o relato dos anos de infância e juventude. Personalidade marcante dos Estudos Judaicos, especialmente pelas notáveis matérias no campo da Cabala e das correntes místicas; a presença deste historiador e pensador extrapolou os limites do Judaísmo e da “História das Religiões”.

Pelo espectro de seus interesses culturais, pela amplitude de sua erudição e pela qualidade de seu espírito crítico, Scholem foi uma das vozes significativas de um seleto grupo de intelectuais judio-alemães (junto aos filósofos Walter Benjamin e Martin Buber) que, no decorrer dos tormentosos anos de início do século 20; se fizeram ouvir no mundo ocidental. Seus estudos abrangem uma gama da literatura judaica pós-bíblica, desde a era rabínica até o Chassidismo e além dele.

Para muitos intelectuais, os estudos e determinações de Gershom Scholem têm sido sua única fonte de conhecimento sobre a Cabala. Na maioria das obras modernas sobre a história judaica, as teorias de Scholem – como a ideia de que a Cabala de Isaac Luria, o ARI, deve ser entendida como uma resposta ao exílio traumático dos judeus da Espanha e Portugal, e que o movimento pseudo-messiânico de Shabatai Tzvi foi possível pela disseminação em massa da Cabala do ARI – são tratados como se fossem fatos estabelecidos.

Recentemente, um dos principais discípulos de Gershom Scholem, o Prof. Moshe Idel, docente da Universidade Hebraica, abalou o mundo acadêmico ao desafiar parte das premissas básicas de Scholem. A controvérsia em torno do trabalho de Moshe Idel se espalhou da sala de aula e de textos acadêmicos e eruditos para jornais e revistas populares tanto em Israel como nos Estados Unidos.

As revisões de Moshe Idel, inseridas em seu trabalho “Kabbalah: New Perspectives” (Yale University Press, 1989) elevaram a sua posição em várias partes do mundo acadêmico como um pesquisador da nova onda, um rebelde contra a autoridade do mestre, um ousado herege no templo sagrado da academia. Ironicamente, as ideias de o Prof. Idel, classificadas de “heréticas”, trouxeram à pesquisa acadêmica para mais perto da própria concepção da Cabala e da tradição judaica do que qualquer um teria imaginado ser possível.

Quatro dos principais argumentos em que Moshe Idel desafiou Gershom Scholem podem ser resumidos da seguinte forma:

  1. A origem da Cabala

Uma das afirmações centrais de Gershom Scholem é que a Cabala surgiu como resultado da exposição do Judaísmo Rabínico ao Gnosticismo, filosofia dualista de origem grega e persa que abriu o caminho para a salvação do homem. O gnosticismo é um sistema filosófico de grandes especulações mitológicas concernentes à natureza de Deus e do reino celestial, especulações que Scholem viu repetidas ou elaboradas nos textos dos cabalistas. Desta forma, a própria Cabala, de acordo com o filósofo berlinense, originou-se através da penetração de uma heresia estrangeira no Judaísmo Rabínico.

Por sua parte, o Prof. Moshe Idel entende a Cabala como um desenvolvimento interno, cujas fontes podem ser localizadas dentro do próprio Judaísmo. Ele aponta semelhanças existentes entre certos textos gnósticos e alguns símbolos e ideias cabalísticas, que podem ser facilmente explicadas postulando uma influência judaica no gnosticismo, em vez do contrário.

A descoberta da Biblioteca Nag Hammadi, com sua coleção de textos gnósticos do Cristianismo primitivo, descoberta na região do Alto Egito, (perto da cidade de Nague Hammadi em 1945), revelou fontes históricas que não estavam disponíveis quando Scholem fez suas pesquisas. Esta coleção lançou uma nova luz sobre a história do Gnosticismo e, de fato, de acordo com Idel, demonstrou que os gnósticos foram influenciados por símbolos e conceitos judaicos e não ao contrário. Scholem, segundo Idel, “nunca explicou satisfatoriamente por que grandes sábios judeus do segundo século adotariam uma doutrina que sabiam ser herética”.

  1. A relação entre o Judaísmo Rabínico e a Cabala

Gershom Scholem acreditava na existência de uma tensão básica entre o Judaísmo Rabínico (haláchico) e a Cabala. Ele descreveu o Judaísmo Rabínico como um judaísmo “estranhamente seco e sóbrio”. O ritual do Judaísmo Rabínico escreveu Scholem, “não faz nada acontecer e não transforma nada”. As preocupações do Judaísmo Rabínico, de acordo com Scholem, são essencialmente legalistas e, portanto, um passo distante da fonte viva de inspiração espiritual.

A Cabala, por outro lado, afirma Scholem, é como uma corrente subterrânea movendo-se através do coração do Judaísmo, carregando consigo o poder vital das ideias místicas. Em momentos críticos, especialmente durante tempos de crise existencial, esta corrente irrompe, infundindo ao Judaísmo uma nova vida em pontos da história judaica quando o Judaísmo Rabínico não podia fornecer ao povo judeu sustento espiritual suficiente.

Moshe Idel não acredita que tenha existido uma tensão entre o Judaísmo Rabínico, a Halachá e a Cabala. Em vez disso, percebe uma quantidade imensa de conexões entre as ideias rabínicas encontradas no Talmude e no Midrash, e os conceitos e símbolos cabalísticos. Essas conexões reforçam sua crença de que a Cabala cresceu organicamente a partir do Judaísmo Rabínico e até mesmo de que a Cabala contém os elementos da tradição oral autêntica que remonta aos Profetas e aos sacerdotes do Templo Sagrado.

“Que testemunho maior podemos ter”, afirma Idel, “do que os dos maiores especialistas em textos judaicos de seu tempo – pensadores como Avraham Ibn Daud (Raavad), o Ramban (Nahmanides), o rabino Yosef Karo e o Gaon de Vilna? Se a Cabala fosse contra a tradição rabínica, eles teriam visto isso claramente. Ainda assim, todos eles estavam convencidos de que a Cabala era uma verdadeira interpretação do Judaísmo e uma tradição que estava totalmente em consonância com o Talmude e o Midrash. Como pesquisadores científicos, não somos obrigados a acreditar em seu testemunho. Por outro lado, também não podemos ignorar. ”

  1. A relação existente entre o exílio dos judeus da Espanha e a Cabala do ARI, e a Cabala do ARI e o movimento messiânico de Shabatai Tzvi

O Prof. Gershom Scholem acredita que o trauma do exílio resultado da expulsão dos judeus da Espanha e os fortes anseios messiânicos que este evento despertou, aparecem refletidos na cosmologia cabalística do ARI, com ênfase na catástrofe, (representada na shevirat hakelim ou quebra dos recipientes) e o tikkun olam (conserto do mundo) que ocasionará o advento do Messias. De acordo com Scholem, a popularização da Cabala do ARI preparou o caminho para o advento de Shabatai Zevi (1626-1676), e desta forma, alimentou uma forte efervescência messiânica entre as massas judias.

Por sua parte, Moshe Idel argumenta contra essas duas afirmações. Ele lembra que ARI nunca menciona o exílio dos judeus da Espanha em nenhum dos registros que temos de seus ensinamentos. Idel também afirma que os conceitos apocalípticos e messiânicos que o ARI enfatiza podem ser encontrados em obras cabalísticas anteriores que antecederam o exílio espanhol de 1492 em décadas ou séculos.

O Prof. Idel relembra que as obras de Isaac Luria nunca poderiam ter influenciado massas de judeus, preparando o terreno para o advento de Shabatai Zevi porque, embora ARI fosse amplamente reconhecido como um santo e grande mestre, suas doutrinas eram conhecidas apenas por uma elite intelectual restrita e seleta.

  1. A natureza da Cabala: Ideias ou experiências?

Tanto Scholem como Idel discordam acerca da natureza da Cabala. A pergunta que ambos tentam responder é a seguinte:

A Cabala é essencialmente um sistema de pensamento ou um caminho para a experiência mística e até mesmo para a união com D´us?

Gershom Scholem entendia a Cabala como um conjunto de ideias místicas e míticas. Embora estivesse ciente de que havia toda uma “dimensão experiencial” significativa na Cabala, a experiência mística raramente era o tema central de seu trabalho acadêmico. Seu foco principal, e também de seus discípulos, foi sempre a leitura e análise atenta dos textos. Ao ler Scholem, é possível ter a impressão de que os próprios textos e as ideias que eles articularam foram o produto final do esforço cabalístico.

Moshe Idel segue uma abordagem oposta. Ele entende que mesmo os textos mais teóricos têm como origem e objetivo a experiência mística. “É importante que os acadêmicos da Cabala entendam o que significa vivenciar a Cabala”, diz ele. E Idel alerta: “Esses textos foram escritos por e para pessoas que tentavam estar cientes, a cada movimento que faziam, em cada pensamento que tinham, do efeito que estavam causando no alto, de acordo com o mapa que havia sido desenhado para elas pela Cabala. Tente praticar esse tipo de consciência por algumas horas, muito menos por alguns anos, e você verá como o seu estado de consciência muda rapidamente e você começa a perceber as coisas de uma maneira totalmente diferente. As ideias encontradas nas obras cabalísticas são apenas o começo, apenas o ponto de partida do que trata a Cabala. ”

A controvérsia ainda continua. Sem dúvida, uma leitura atenta dos livros e artigos de Gershom Scholem e seu discípulo Moshe Idel é hoje fundamental para melhor entender quem deles se aproximou mais à realidade histórica, ou se por acaso, seus pontos de vista se completam e retroalimentam.

Bibliografia

Acerca das obras de Gershom Scholem:

Scholem, Gershom, Major Trends in Jewish Mysticism, 1941. Reprinted in New York, Schocken Books, 1946.

Scholem, Gershom, Jewish Gnosticism, Merkabah Mysticism, and the Talmudic Tradition, 1960

Scholem, Gershom, The Messianic Idea in Judaism and other Essays on Jewish Spirituality, trans. 1971

Scholem, Gershom, Sabbatai Sevi: The Mystical Messiah, 1973

Scholem, Gershom, Kabbalah, Meridian 1974, Plume Books 1987

Scholem, Gershom, Origins of the Kabbalah, JPS, 1987

Scholem, Gershom, On the Mystical Shape of the Godhead: Basic Concepts in the Kabbalah, 1997

Scholem, Gershom, Zohar – The Book of Splendor: Basic Readings from the Kabbalah, edited by  Schocken Books; 1995

Scholem, Gershom, On the Kabbalah and Its Symbolism, edited by  Schocken Books; 1996

Acerca das obras de Moshe Idel:

Idel, Moshe, Kabbalah: New Perspectives. Yale University Press, New Haven and London, 1988

Idel, Moshe, The Mystical Experience in Abraham Abulafia. Translated from the Hebrew by Jonathan Chipman. Albany, State University of New York Press, 1988

Idel, Moshe, Studies in Ecstatic Kabbalah. Albany, New York State University of New York Press, 1988

Idel, Moshe, Language, Torah and Hermeneutics in Abraham Abulafia. Translated by Menahem Kallus. Albany, State University of New York Press, 1989

Idel, Moshe, Golem: Jewish magical and mystical traditions on the artificial anthropoid. Albany, State University of New York Press, 1990

Idel, Moshe, Hasidism: Between Ecstasy and Magic. SUNY Press, Albany, 1994

Idel, Moshe, Mystical Union and Monotheistic Faith, An Ecumenical Dialogue, eds. M. Idel, B. McGinn. New York, Macmillan, 1989; 2nd ed., Continuum, 1996

Idel, Moshe, Messianic Mystics. Yale University Press, New Haven, London, 1998

Idel, Moshe, Jewish Mystical Leaders and Leadership, eds. M. Idel, M. Ostow. Jason Aronson, Northvale, 1998.

Idel, Moshe, Abraham Abulafia, An Ecstatic Kabbalist, Two Studies. Edited by Moshe Lazar, Labyrinthos, CA, 2002

Idel, Moshe, Absorbing Perfections, Kabbalah and Interpretation. Yale University Press, New Haven, 2002

Idel, Moshe, Ascensions on High in Jewish Mysticism: Pillars, Lines, Ladders. CEU, Budapest, 2005

Idel, Moshe, Enchanted Chains: Techniques and Rituals in Jewish Mysticism. The Cherub Press, Los Angeles, 2005

Idel, Moshe, Kabbalah and Eros. Yale University Press, New Haven, 2005

Idel, Moshe, Old Worlds, New Mirrors, On Jewish Mysticism and Twentieth-Century Thought. University of Pennsylvania Press, Philadelphia, 2009

Idel, Moshe, Kabbalah in Italy 1280-1510 (Yale University Press, New Haven, 2011

Idel, Moshe, Saturn’s Jews, On the Witches’ Sabbat and Sabbateanism. Continuum, London, New York, 2011

Idel, Moshe, Representing God. Eds. H. Samuelson-Tirosh. A. Hughes. Leiden, Brill, 2014

Idel, Moshe, Vocal Rites and Broken Theologies: Cleaving to Vocables in R. Israel Baal Shem Tov’s Mysticism. Crossroad, New York, 2020