O tango “Plegária”: Música como resiliência durante o Holocausto

Nos últimos anos, o uso da música nos vários guetos e campos nazistas foi alvo de descobertas reveladoras. Nesses lugares insalubres a música ocupou uma posição ambivalente, ora servia como estratégia legítima de sobrevivência para as vítimas que se encontravam diariamente em penosa situação, ora era utilizada pelos perpetradores como uma tentativa perversa de rebaixa-las e degrada-las.

Para os estudiosos do tema “Música no Holocausto”, o tango argentino, conhecido apenas em um seleto círculo europeu desde a década de 1920, (graças à influência do legendário Carlos Gardel), foi também um elo nessa corrente social e, como outras tantas músicas, fez parte de heroicos atos de resistência face às tentativas de massacre e extermínio.

Szpilman – “O Pianista”

A maioria das pessoas assistiu ao filme do renomado cineasta Roman Polanski “O Pianista” (2002), trama que expôs a vitalidade da vida musical no interior do gueto de Varsóvia há mais de 80 anos. A rua Leszno, inclusive, era até sarcasticamente denominada de a “Broadway de Varsóvia”. O filme vencedor de três Oscars descreve a dor e o sofrimento do pianista judeu Wladislaw Szpilman (1911-2000), e o contraste de níveis sociais na comunidade judaica confinada no gueto sobre domínio nazista. Desta forma, é fácil entender como dentro dessa estrutura social “fechada” imposta aos judeus; a música representou um dos caminhos para a sobrevivência.

No filme, talvez uma das cenas mais tocantes, seja aquela em que Szpilman (magistralmente interpretado por Adrien Brody), toca a “Balada No. 1 em sol menor” de Chopin diante de um oficial alemão, que em seguida o ajuda em sua sobrevivência. Na realidade, o pianista tocou a “Noite nº 20 em dó menor”, mas de qualquer forma, a licença do filme é legítima, pois o importante é o fato de Szpilman ter interpretado um compositor polonês.

“O Pianista” serviu para caracterizar um Szpilman de carne e osso, um ícone da resistência em tempos de Holocausto. Um destino diferente, um contraponto à lendária cantora judia Dwojra Grynberg ou Wiera Gran (1916-2007), parte inseparável da vida musical do gueto de Varsóvia, porém destacada colaboradora do regime nazista. Com um registro sugestivo de contralto, sua voz pode ser hoje rastreada em plataformas digitais na versão de “Uliczka w Barcelonie” (Uma pequena Rua de Barcelona), que não é outra senão o belo tango “Callecita de mi barrio” (1925), um clássico de Carlos Gardel.

O tango argtentino

Nos anos 1920-1930, o tango argentino era difundido em toda a Europa, especialmente na Polônia. Depois de Paris, a cidade de Varsóvia era o lugar que melhor havia acolhido a música portenha. Existem inclusive versões polonesas do tango “Caminito”, “Piedad”, “Esta noche me emborracho” e, naturalmente, a vivência “tangueira” continuou após a instauração do gueto.

A música existente nos guetos e nos campos de concentração e extermínio nazistas não era uma exceção, era a própria regra. Ela fazia parte do cotidiano. Nas instalações da morte havia orquestras e a música fazia parte do circuito planejado. Nestas linhas gostaria de analisar a história do tango “Plegária” de Eduardo Bianco, um compositor e músico argentino no auge da Alemanha nacional-socialista.

O Ministro da Propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, ficou fascinado ao escutar Eduardo Bianco tocar violino em um teatro de Berlim. Havia assistido ao concerto com sua esposa Magda e, ao término do mesmo, se apresentou no seu camarim, para lhe manifestar sua admiração.

Joseph Goebbels, que publicamente manifestou sua aversão ao jazz por ser “Entartetede Musik” (música degenerada) produzida por negros; amava o tango. Ele escolheu esta música nascida na Argentina para acompanhar o horror cotidiano do campo de Auschwitz.

O poeta Paul Celan (1920-1970), pseudônimo de Paul Pessakh Antschel, detido no campo de Janowaska, jamais esqueceu os acordes do tango “Plegária”. Encerrada a 2a Guerra Mundial, ao recuperar sua liberdade, Celan escreveu um dos poemas mais belos e terríveis, intitulado “Fuga da Morte” (ou na versão original “Tango da Morte”), homenagem ao tango de Bianco.

Eduardo Bianco

No início de carreira, Eduardo Bianco (1892-1959) tocava violino. Após estudar composição e direção de orquestra viajou à Europa, e lá criou sua própria banda. Junto ao bandoneonista (sanfonista) Juan Bautista (Bachicha) Deambroggio (1890-1963), gravou pelo selo Odeon, tocando tango nos melhores salões de Paris, Berlim, Atenas, Bucareste e Istambul. Entre seus ouvintes encontravam-se reis, príncipes, presidentes e ministros.

Bianco ficou famoso por ganhar-se a simpatia dos poderosos. Adorava comparecer a lugares frequentados por aristocratas, nobres decadentes, falsos milionários e parasitas sociais. Era bajulador de líderes políticos. Em 1929 ele dedicou o tango “Evocación” a Benito Mussolini. Não satisfeito, oito anos depois compôs para o Ducce o tango “Destino”. Forte simpatizante dos regimes totalitários, Bianco era uma figura musical reconhecida em toda Europa.

Na Europa dentre guerras (1919-1939), todo tango que chegasse da Argentina era valorizado. Foi assim como este gênero nusical foi se infiltrando através de grupos vindos do outro lado do oceano. Desde sua chegada ao velho continente, Eduardo Bianco simpatizou com grupos políticos de extrema direita. Com fundamento, o poeta e compositor de 800 tangos, Enrique Cadícamo (1900-1999), advertia os músicos argentinos recentemente chegados a Paris, para cuidarem-se de fazer comentários políticos na frente de Bianco, pois era um agente secreto dos nazistas. Suas relações com os comparsas de Hitler, não lhe impediram de passar uma longa temporada na URSS e surpreender a Stalin com seus tangos.

Em 1932 o diplomata argentino Eduardo Labougle Carranza (1883-1965) entregou a carta de admissão como embaixador na Alemanha ao Marechal Paul von Hindenburg. Assim, Eduardo Bianco se conectou aos nazistas através de Labougle, um admirador incondicional de Hitler e grande antissemita. Foi entre 1932 e 1939 que se preocupou por difundir o tango na cúpula nazista.

Certa vez Labougle organizou um “asado” na Embaixada da Argentina em Berlim. Ao evento compareceu Adolf Hitler, acompanhado de seus principais colaboradores. O Führer apreciou a qualidade das carnes e ficou maravilhado com os tangos. Na ocasião estavam presentes os músicos da orquestra de Bianco, e um deles, o bandoneonista Juan Pecci; se ofereceu a cozinhar e servir a Hitler.

A orquestra de Eduardo Bianco voltou a Buenos Aires por finais de 1943. O Nazismo estava sendo derrotado na Europa, mas Argentina ainda contava com um número significativo de admiradores. Aos poucos, a banda foi perdendo audiência. Isto é compreensível, afinal uma coisa é tocar tango para europeus sedentos de novos ritmos musicais e outra é fazer música para argentinos que dia-a-dia respiram tango, competindo com as talentosas orquestras de Aníbal Troilo, Osvaldo Pugliese ou Carlos di Sarli.

“Plegária” de Eduardo Bianco

O tango “Plegaria” estava dedicado ao rei de Espanha Alfonso XIII no ano em que o monarca abdicava, iniciando-se uma experiência republicana que Eduardo Bianco detestou. De letra convencional e desajeitada, existem algumas versões do tango, talvez as mais famosas sejam as de 1922, interpretadas por Carlos Gardel e Francisco Canaro.

“Plegária” foi uma melodia que cativou às lideranças nazistas por seu ar nostálgico, ideal para o dispositivo dos campos. (https://www.todotango.com/musica/tema/2939/Plegaria/).

Plegaria que llega a mi alma
al son de lentas campanadas,
plegaria que es consuelo y calma
para las almas desamparadas.
El órgano de la capilla
embarga a todos de emoción
mientras que un alma de rodillas
¡pide consuelo, pide perdón!

¡Ay de mí!… ¡Ay señor!…
¡Cuánta amargura y dolor!
Cuando el sol se va ocultando
(una plegaria)
y se muere lentamente
(brota de mi alma)
cruza un alma doliente
(y elevo un rezo)
en el atardecer.

Murió la bella penitente,
murió, y su alma arrepentida
voló muy lejos de esta vida,
se fue sin quejas, tímidamente,
y di en que noche callada
se oye un canto de dolor
y su alma triste, perdónala,
toda de blanco canta al amor!

¡Ay de mí!… ¡Ay señor!…
¡Cuánta amargura y dolor!
Cuando el sol se va ocultando
(una plegaria)
y se muere lentamente
(brota de mi alma)
cruza un alma doliente
(y elevo un rezo)
en el atardecer.

A letra de “Plegária” fala da dor de uma mulher que morre lentamente na hora em que o sol se oculta. Sua imagem atinge uma alma doente de amor, cúmplice de lugares comuns. Mas, esta triste realidade da letra em espanhol pouco importava, pois nem os franceses nem os alemães entendiam o que dizia o cantante.

A música de “Plegaria” enlouquecia plateias. O tango se emancipou e, com outra letra, desta vez escrita em alemão, se transformou em grande sucesso. Quem não se libertou foi Eduardo Bianco. Ele tocou para Adolf Hitler, Heinrich Himmler e Albert Speer, entre outros. Hitler ficou apaixonado com o tom solene da música, e sempre que tocada, solicitava uma nova interpretação. Certa vez Goebbels, que idolatrava o Führer, comentou com sua esposa Magda: “Eu sabia que Adolf era um sentimental”.

Tal qual aconteceu em Dachau ou em outros campos, a música também fez parte do circuito de resistência e, dentro deles, os prisioneiros compunham. É curiosa a história do “Tango de Auschwitz” (cujo nome original era “Der tango fun Osviecim”), transcrito graças à memória fenomenal da ex-prisioneira Irke Yanovski, que lembrou ser cantado para elevar o ânimo das prisioneiras, com compasso de dois por quatro, típico da primeira etapa do tango.

Para a estudiosa britânica Shirli Gilbert, “o tango era um ritmo popular no período de pré-guerra e os prisioneiros continuaram a usá-lo também nos campos e nos guetos como base de suas novas letras”. Havia um tango para as escravas de Auschwitz e outro para aguardar pacientemente os dias da tão sonhada liberdade. Eis a estrofe principal de uma das canções:

“Oh, el tango de las esclavas de Auschwitz
Espuelas de acero de nuestros guardianes,
Oh, los días de libertad nos reclaman“.

Essa música teve mais de uma versão durante o Holocausto. Ela não é redutível a um único estereótipo ou a uma perspectiva simplificadora, mas, em qualquer caso, é evidente que os prisioneiros recorreram a ela para sustentar o ato da humanidade e estabelecer uma relação de continuidade com a existência de pré-guerra. Assim, pretendiam apenas construir uma estrutura que lhes permitisse assimilar a crueldade que a experiência diária lhes impunha.

Encerro esta breve matéria afirmando que o tango argentino foi e será, (talvez como toda expressão estética), um fato distante do ato deliberadamente mecanizado da aniquilação.

Bibliografia

Adet, Manuel, Eduardo Bianco e o “Tango da Morte”. EL LITORAL. Escenarios & Sociedad. Edición del sábado 29 de junio de 2013. https://www.ellitoral.com/index.php/diarios/2013/06/29/escenariosysociedad/SOCI-06.html

Faingold, Reuven, Música em Dachau. MORASHÁ No. 90, ano XXII, dezembro de 2015, págs. 57-64.

Faingold, Reuven, Talentos musicais em Buchenwald: 1937-1945. MORASHÁ No. 107, ano XXVIII, abril 2020, págs. 35-41.

Lerner, Sílvia, A Música Como Memória de Um Drama – O Holocausto. Editora Garamond. Rio de Janeiro 2017.

Nudler, Julio, Del Ghetto a la milonga. Editorial Sudamericana, Buenos Aires 1988, 350 págs.

Shirli Gilbert. Music in the Holocaust: Confronting Life in the Nazi Ghettos and Camps. New York: Oxford University Press, 2005, 243 pgs.

Todo Tango. Sitio declarado de interés nacional. Eduardo Bianco.
https://www.todotango.com/creadores/biografia/324/Eduardo-Bianco/