Os mestres de hebraico de D. Pedro II

Durante séculos, a língua hebraica foi considerada pelos próprios judeus, uma língua litúrgica e sinagogal. Em pleno século 19, renasceu como língua viva, graças ao incansável esforço do escritor Eliezer Ben Yehuda (1858 – 1922) que conseguiu, em pouco tempo, converter o hebraico em língua viva. Enquanto acontecia este “revival”, o imperador D. Pedro II se aprimorava, com afinco, no estudo do idioma da Bíblia e dos Profetas de Israel. _______________________________________________________________________________________________________

A CARTA DE MUNIQUE

Há dez anos aproximadamente, venho estudando a relevância do hebraico na vida de D. Pedro II, focando a participação dos quatro mestres de hebraico na sua formação intelectual; mas a falta de informação obrigava-me a interromper meus planos. Uma correspondência postada recentemente em Munique permitiu que avançasse nas minhas descobertas. Era uma breve carta com fotos redigida pelo Sr. Irmgard Helfrich, bisneto de Karl Friedrich Henning, um dos quatro professores de hebraico do Imperador.

O conteúdo da carta do Sr. Helfrich, de 70 anos, mesmo que breve, amplia as poucas informações recolhidas uma década atrás enquanto escrevia “D. Pedro II na Terra Santa: Diário de Viagem – 1876”, e revela fatos desconhecidos relacionados com a pessoa que acompanhou o monarca brasileiro durante sua estadia na Terra de Israel, então sob domínio turco-otomano.

A releitura do Diário de Viagem à Palestina em 1876, dos Cadernos de Estudo de Hebraico, dos Poemas Hebraico-Provançais, dos documentos dos Livros de Contas das Receitas e as Despezas da Casa Imperial com os vencimentos e pagamentos efetuados aos mestres do Imperador, constituem uma pequena parte da vasta documentação utilizada para poder reconstruir esta época.

OS PROFESSORES DE HEBRAICO

 

Os mestres de hebraico de Sua Alteza D. Pedro II fazem parte de uma enorme galeria de prestadores de serviços atrelados à corte Imperial. Todos eles eram contratados com remunerações e benefícios.

Na introdução as Poesias Hebraico-Provençais do Rito Israelita Comtadin publicadas em 1891, o monarca do Brasil registra o motivo fundamental pelo qual se dedicara com afinco a estudar o hebraico:

“Quanto ao histórico de meus estudos hebraicos empreendidos com o fito de melhor conhecer a história e a literatura dos judeus, principalmente a poesia e os Prophetas, assim como as origens do Cristianismo, taes estudos remontam aos anos de paz que antecederam a Guerra do Paraguai, em 1865. Encetei-os durante as permanências em Petrópolis com o Sr. Akerbloom, judeu sueco. Mais tarde, retomei-os com o Sr. Ferdinand Koch, ministro protestante, alemão preceptor do filho da Sra. Condessa de Barral, aia de minhas filhas. Após a morte súbita deste, prossegui-os com o doutor Karl Henning… e desde 1886 com o meu sábio colaborador e professor de línguas orientais, o Dr. Ch. Seybold, com quem também continuei o estudo do árabe, outrora começado com o Barão de Schreiner, Ministro da Áustria no Brasil, que eu já conhecia do Egito”. 

O texto citado acima é curioso por dois motivos: esclarece o enorme valor atribuído pelo Imperador do Brasil à literatura judaica, e menciona os nomes completos dos quatro mestres de hebraico:

As mais antigas referências ao primeiro mestre de hebraico de D. Pedro II, o Sr. Leonahard Akerbloom (Solleftea 1830 – Saint Gallen 1896), aparecem no famoso Almanaque Laemmert (ano 1862), pág. 430: “formado na Universidade de Upsala, ele (Akerbloom) ensinou durante um curto período no colégio anglicano Charles Matson em Petrópolis, substituindo em 16/02/1863 no cargo o vice-cônsul sueco o Sr. Hugo Hagestron”.

Entre 1814-1905, os territórios da Suécia e da Noruega constituem um único Reino, portanto Akerbloom desempenhara a função de cônsul do reino viking no Rio de Janeiro entre 1867 e 1871. Depois de deixar os trópicos, o diplomata nórdico foi desempenhar o cargo de cônsul em Lubeck na Polônia. Foi casado com Louise Marie Josephine Meyrad (1841-1908), de origem suíça e residente do Rio de Janeiro. A filha do casal Akerbloom era Marie Louise Akerbloom casada com o médico Hans Naegli. Por sua vez, eles também tiveram uma filha de nome Marie Louise Ingeborg Naegli que residia em Genebra. Ao começar as aulas de hebraico D. Pedro II tinha 42 anos de idade.

Luterano da cidade de Hannover, Ferdinand Koch foi responsável pelos estudos de Dominique, o filho único de Maria Margarida de Portugal (Condessa de Barral), a governanta das filhas de D. Pedro II. Por 1871 Koch assistia ao Imperador com o hebraico, que utilizaria mais tarde nas suas visitas às sinagogas da Europa. Numa carta de D. Pedro II à Condessa de Barral ele registra: “Diga ao Koch que muitas saudades tenho de suas lições”.

O catedrático alemão dominava as três línguas sacras e também lecionou sânscrito. Depois de alguns anos morando no Rio de Janeiro, Koch já dominava perfeitamente a língua portuguesa e tornou-se verdadeiro amigo de D. Pedro II. Ele morreu em Petrópolis. No dia do enterro, seu aluno de honra o perpetuou com uma inscrição gravada em seu jazigo; tratando-o de “amigo” em latim, grego e hebraico.

Karl Henning foi o terceiro professor de hebraico contratado pela corte brasileira. Nascido em Darmstadt em 1843, recebe um convite oficial de S. Majestade para vir ao Brasil por finais de 1874.  Henning ancorou no porto do Rio de Janeiro em 12 de novembro de 1874 carregado de livros, e dois dias após sua chegada recebe a primeira carta endereçada por D. Pedro II:

“Eu já havia falado a V.S. sobre o Barão Nogueira da Gama, o mordomo da Casa Imperial. O senhor poderá encontrá-lo amanhã entre as 10 e 11 horas da manhã. Apresente a ele as despesas (contas) da viagem junto ao sinal dado pelo Visconde de Nioac, e veja se a quantia não foi suficiente. O Senhor Barão Nogueira da Gama mora na Rua Duc de Saxe, muito próximo do parque de minha casa. Ele (Nogueira da Gama) me acompanhou até a Europa como Ministro da Corte (chambellan) e sei que se agradarão reciprocamente. Espero que o senhor tenha passado bem sua primeira noite no Brasil, e se não houver impedimento algum, enviarei um carro na 2ª feira (lundi) as 17:00 horas até o Hotel Carson, para depois alugar uma casa nas minhas imediações como desejamos. Pois há pouco mais de um mês não converso e desta foram poderá conhecer o quanto sei de hebraico pelas traduções do Gênese. Traga sua Bíblia hebraica e também alguma coisa em sânscrito para leitura.

Desculpe a minha pressa em querer demonstrar o desejo de estudar”. 

                                                                       Seu devoto aluno: Pedro II – Rio de Janeiro, 09 de novembro 1874.

Esta carta, que recebi do Sr. Irmgard Helfrich (bisneto de Karl Henning), desperta curiosidade por dois motivos: demonstra a cálida hospitalidade oferecida pela corte brasileira aos prestadores de serviços que aqui chegavam para atender o nosso monarca, e diz respeito à enorme vontade do soberano em aprender línguas exóticas tais como hebraico, tupi, chinês e sânscrito.

A carta de D. Pedro II escrita no segundo dia da chegada do convidado ao Brasil, revela uma preocupação com o sustento do seu novo mestre, a necessidade imediata de que este se sinta “em casa” e, finalmente, a forte sede do rei filósofo em retomar as suas aulas de hebraico; interrompidas subitamente pela morte de Ferdinand Koch.

O pedido de Pedro II para Henning trazer sua Bíblia hebraica é motivo de reflexão em separado. Junto a ele, o soberano traduziu trechos inteiros da Bíblia como a tradução para o francês do Livro de Ruth, brinde do Imperador ao Barão de Paranapiaçaba. Segundo palavras de Vale Cabral ao Barão de Rio Branco em carta de 1886: “Henning viu, compulsou e catalogou tudo”.

Maria Margarida de Portugal – Condessa de Barral- e amante de Pedro II, recebeu excelentes informações sobre Henning e numa carta pessoal enviada ao Imperador em 18 de julho de 1880 registrou o seguinte:

 “Que ele (Henning) desempenhe suas funções tão bem como o pobre Koch… Eu o reputo muito feliz de ser chamado a viver na intimidade de V.M. (Vossa Majestade) e meu único pesar é de não poder fazer minha vez e de ter aí os óculos do estudante de Salamanca”.

Karl F. Henning, reconhecido como um homem de sólidos e sérios conhecimentos, chegou ao porto do Rio de Janeiro carregado de livros. Durante 1875-1876 Henning foi responsável pelos trabalhos literários do Imperador, ministrando aulas de hebraico e sânscrito, sendo agraciado com uma pensão anual de 6.000 francos pelos serviços prestados.

Em 1876 um prêmio maior esperava a Henning: fazer parte da comitiva imperial que empreenderia a segunda viagem internacional pela América do Norte, Europa e Oriente Médio. A primeira delas pela Europa e Egito havia partido cinco anos antes, em 1871. Em 1886, aos 43 anos, Karl Henning adoeceu, voltou para sua cidade natal Dramstadt e faleceu em 1887.

O orientalista Christian Fredrich Seybold (1859-1921) foi o quarto mestre de hebraico do Imperador. Filólogo e linguista alemão formado na Universidade de Tubinga, foi professor auxiliar de línguas semíticas desta entidade. Ele chegou ao Brasil por 1887, atuou também como correspondente da “Real Academia de la Historia” de Madri, do “Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro” no Rio de Janeiro e da “Sociedade Arqueológica da França” sediada em Paris.

Este especialista em cultura islâmica teve uma produção científica invejável, fazendo parte de sua obra científica os seguintes livros:

  1. a) Ibn Al-Anbari, Asrar Al-Arabija. Leyden 1886.
  2. b) Breve notícia da Língua Guarani, 1890.
  3. c) Vocabulário da Língua Guarani, 1892.
  4. d) Sujutis Schmarikh Altarikh, 1894.
  5. e) Ibn Al Atirs Kunjaworterbuch, 1900.
  6. f) Glossarium latino-Arabicum, 1900.
  7. g) Drusenschrift Kitabalnokat Waldawair, 1901.
  8. h) Sil und Schumul, 1902.
  9. i) Patriarcharum Alexandrinorum I, 1904.
  10. j) Ibn Hazam de Córdoba, s.d.

HONORÁRIOS DOS MESTRES DE HEBRAICO

Os Livros de Contas da Receita da Casa Imperial trazem valiosa informação acerca dos salários pagos pela corte aos prestadores de serviços, entre eles os mestres do monarca.

Consultando os registros dos anos 1876-1877, (período em que se realizou a viagem de D. Pedro II à Terra Santa), achamos também pagamentos feitos a dois mestres de hebraico: Ferdinando Koch e Karl Henning. A seguir, transcrevo o material descoberto nos Livros da Casa Imperial:

 

Despesas da Thesouraria

para F. Koch – Ano 1876

 

Despesas da Thesouraria

para C. Henning – Ano 1876

Item 6: “Pensão de 13 mezes, até novembro [1876] paga ao procurador da família Koch”  –  Rs. 300,000.

 

31/12/1876 Item 3: “Vencimentos e despezas pagas ao Dr. C. Henning até abril [1876]”  –  Rs. 2.179,050.

 

 

Itam 7: “Vencimento do procurador e despezas judiciaes por elle feitas [Procurador de F. Koch]  –  Rs. 584,920.

31/01/1876 Item 3: “Vencimentos de 3 pagamentos ao Dr. Carlos Henning, incumbido em trabalhos litterários” – Rs. 450,00.

 

“Despezas da Corte realizadas pela

Thesouraria para o ano de 1877”:

Item 7: “Pensão de 6 mezes paga ao procurador da família do finado professor Koch”  –  Rs. 600,000.

 

31/02/1876 Item 3: “Vencimento do Dr. C. Henning até 3 pagamentos”

Rs. 438,750.

31/02/1876 Item 4: “Despezas feitas pelo mesmo Dr. Henning com viagens a Petrópolis e Friburgo de 26/09/1875 a 22 de janeiro de 1876”.  Rs. 164,800.

 

 

 

 

 

31/03/1876 – Item 3: “Vencimento de Dr. C. Henning até 03 de março”.

Rs. 480,000.

Abril de 1876 – Item 4: “Vencimento do mesmo Dr. Henning até 03 de abril”.

Rs. 482,5000.

 

OS CADERNOS DE HEBRAICO

O acervo do Museu Imperial de Petrópolis conserva alguns dos Cadernos de Estudo de Hebraico do Imperador. Um deles é o Glossarium Hebraicum Líber Gênesis I-II et Líber Psalmorum com 19 folhas de exercícios gramaticais, feitos pelo próprio monarca, a partir de textos bíblicos. Cabe destacar que as explicações dadas por D. Pedro II não aparecem em português e sim em inglês e grego. As notas apontadas na margem das páginas foram feitas em latim numa caligrafia miúda.

O estudo dos Cadernos nos permite afirmar que os rudimentos do hebraico foram utilizados pelo Imperador a fim de verter para o latim alguns trechos do Velho Testamento que lhe interessavam particularmente. Na escolha dos textos constata-se a tendência poética do monarca, que também fez traduções para o português de poemas de Henry Longfellow, versos de Alessandro Manzoni e inclusive trechos da Divina Comédia de Dante Alighieri.

Para Isaltino Costa, autor do artigo D. Pedro II Hebraísta, publicado no Estado de S. Paulo (10/12/1925), o Imperador foi o precursor dos estudos hebraicos no país. Segundo este jornalista “os primeiros núcleos de estudiosos começaram a se interessar pelo hebraico ora por diletantismo ora em consequência de uma necessidade imprescindível de conhecimento aprofundado do esoterismo e das filosofias que tem vínculos com a Cabalá israelita”; doutrinas que aqui se acham em voga como reflexo do que então corria em alguns centros intelectuais da Europa.

PALAVRAS FINAIS

É importante enfatizar que, o relacionamento amigável mantido pela Sua Majestade Pedro II com o Judaísmo se apresentou nas mais variadas formas: no seu profundo amor e total dedicação à língua hebraica, mesmo tratando-se de uma língua de culto e liturgia, ainda em fase embrionária e de total renascimento.

Devemos lembrar também a sua enorme paixão pelo Livro dos Livros, o Tanach a Bíblia hebraica, estudada quase sempre na sua versão original, sendo subsidiada com traduções européias das mais diversas, especialmente aquelas vertidas ao francês. Não menos importante foi seu constante desejo de contextualizar trechos bíblicos in loco, durante sua viagem de peregrinação à Terra de Israel em 1876.

Finalmente, registraremos aqui o seu profundo respeito pela antiga cultura judaica, fato que o motivou a convidar personalidades israelitas para participar e contribuir na corte brasileira.

Em 5 de dezembro de 1891, num quarto do Hotel Bedford em Paris, morria Pedro d´Alcântara, o monarca-estudante; aquele que mais parecia um poeta ou um sábio do que um Imperador, mas se lhe tivesse sido dada a oportunidade de concretizar parte de seus projetos, sem dúvida teria feito do Brasil um dos países mais ricos e avançados do Novo Mundo.

BIBLIOGRAFIA

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Faingold, R., Luzes do Império: D. Pedro II e o mundo Judaico. Exposição iconográfica apresentada pelo SESC e CASA DE CULTURA DE ISRAEL em São Paulo, Petrópolis e Rio de Janeiro em 2000. Catálogo com 44 págs. e ilustrações.

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Lipiner, E., Faleceu um dos grandes justos entre as nações: o primeiro entre dez mil. D.O LEITURA No. 110 (São Paulo, 10/07/1991), págs. 12-13.

Livros de Contas da Receita da Casa Imperial. Acervo Museu Imperial de Petrópolis. Anos 1876-1877.