Pioneirismo musical judaico no Brasil Império

Durante o longo Reinado de D. Pedro II, a música brasileira teve uma evolução surpreendente. A participação ativa de músicos da dimensão de Louis Moreau Gottschalk, Fred Figner e irmãos Levy, permitiu avanços significativos como a elaboração das primeiras gravações em estúdio, o uso constante de fonógrafos e a comercialização de partituras e instrumentos musicais.

Edição 75 – Abril de 2012


Mestre Gottschalk

O II Império brasileiro esteve totalmente voltado à cultura e às artes. O grandioso projeto cultural de Sua Majestade, D. Pedro II, não poupava esforços em planejamento nem em recursos financeiros. Era indispensável mostrar ao Velho Mundo que aqui, nos Trópicos, também existiam exemplos de civilização e não apenas vestígios de barbárie.

A pintura e a música foram áreas de enorme valor cultural, brindando um número considerável de artistas e compositores. Especificamente no campo da música, é preciso citar o regente Louis Moreau Gottschalk (1829-1869), judeu-americano nascido em Nova Orleans, que estudou com Berlioz e estreou em Paris ainda jovem, em 1844.

Gottschalk chegou ao Rio de Janeiro em 1869, regendo concertos de sucesso, inclusive na presença de Sua Majestade Imperial, D. Pedro II. Em sua primeira apresentação, em 20 de novembro de 1869, ele regeu a famosa Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro” à frente deuma orquestra de 650 músicos. Ele frequentemente dizia: “My ‘Fantasie on the National Hymn of Brazil’ pleased the Emperor and tickled the national pride of my public. Every time I appear I must play it”! Traduzindo: A Fantasia do Hino Nacional brasileiro, de minha autoria, agradou ao Imperador e sensibilizou o orgulho nacional de meu público. Em toda ocasião que me apresento devo tocá-la.

A segunda apresentação de Gottschalk no Rio de Janeiro estava programada para o dia 26 de novembro do mesmo ano, mas não chegou a se concretizar, pois o compositor judeu se sentiu mal e foi hospitalizado, vindo a falecer na Cidade Maravilhosa alguns dias depois, vítima de febre amarela, que então grassava na cidade.

A “Casa Levy”

Em 1848 ocorreu a “Primavera das Nações”. Grandes transformações políticas na Europa levaram o jovem Henrique Luiz Levy, de apenas 19 anos, a trocar a vida no Velho Continente pelo Brasil. Em 1856 chega a Campinas, hospedando-se na casa da família de Manuel José Gomes. Desde então, torna-se grande amigo do virtuoso Carlos Gomes, que interferiu significativamente em sua formação. Essa amizade duraria até o fim da vida de ambos, que morreram coincidentemente no mesmo ano de 1896.

Com o rápido fortalecimento da burguesia cafeeira, São Paulo se converte em uma cidade rica, com ótimas perspectivas para negócios. Em 1859, o imigrante judeu Henrique Luiz Levy anunciava, através do Correio Paulistano (o primeiro jornal fundado em São Paulo, em 1854), que, juntamente com seu sócio, abriria uma loja de jóias. Um mês e meio após a inauguração do novo espaço comercial, Levy informa pelo mesmo veículo que colocava à venda composições de Carlos Gomes.

Por diferentes circunstâncias, o nome Levy se vincula à história da música no Brasil. Estimulados por H.L. Levy, o gênio de Carlos Gomes e seu irmão, José Pedro de Sant’ Ana Gomes começavam a despontar. Num curto espaço de tempo, resolvem apresentar-se em público pela primeira vez. O concerto de apresentação ocorreu no Teatro São Carlos de Campinas, em 23 de abril de 1859, com José Pedro (conhecido como Juca Músico) na rabeca, Carlos Gomes no piano e Henrique Luiz Levy no clarinete.

Nessa época, o jovem Carlos Gomes já possuía em sua bagagem peças que, por seu caráter, denotavam forte nacionalismo musical brasileiro. É o caso de “A Cayumba”,  primeira  dança negra para piano, datada de 1857, ou da “Fantasia sobre o Romance Alta Noite”  para clarinete, cuja interpretação ficou a cargo de Henrique Luiz Levy. Acompanhando Carlos Gomes à capital paulista, onde se apresentaram novamente em concerto e posteriormente no Rio de Janeiro, Henrique Luiz Levy retornava  à capital  paulista e fundava, em 1860, a “Casa Levy de Pianos e Música”, existente até hoje.

Na loja de música do velho Henrique Luiz Levy, instalada à Rua da Imperatriz (hoje Rua 15 de novembro No. 33), foram lançadas obras musicais que se tornaram célebres, como “A Sertaneja”, de Brasílio Itiberê, ou a famosa modinha de Carlos Gomes, “Quem Sabe”. Dos quatro filhos do velho Levy com Anne Marie Theodoreth, dois iriam conquistar um lugar importante na vida musical do país: Luiz Henrique e Alexandre.

Luiz Henrique Levy

Em 1860, nasce o primeiro filho de Henrique Luiz Levy. Com pouca originalidade, recebe o nome Luiz Henrique. Para poder sustentar-se, o pai aceitava trabalhos como clarinetista, participando de vários concertos organizados por ele mesmo com outros músicos franceses, dentre eles o virtuoso compositor e pianista Gabriel Giraudon.

Diferente de seu irmão Alexandre, Luiz Henrique Levy não se dedicou com total exclusividade à composição musical e ao piano. Exímio instrumentista e compositor, com grande desenvoltura e impressionante habilidade, Luiz Henrique tinha um comportamento alegre e jovial. No entanto, não compunha tanto quanto seu irmão. Daí, talvez, o caráter um tanto diletante de seu trabalho.

Dedicando-se mais ao piano do que à composição, Luiz Henrique dirigiu por muitos anos a “Casa Levy de Pianos”, tornando-se um efervescente ponto de encontro dos músicos e artistas dos mais importantes da Paulicéia. Mencione-se ainda o grande mérito de ter dado a seu irmão menor, Alexandre, as primeiras  noções musicais.

Alexande Levy 

Alexandre Levy (1864-1892) é um dos maiores nome da história musical brasileira, junto com Alberto Nepomuceno, ambos tidos como precursores do nacionalismo no país. Se tivesse vivido mais tempo, certamente Alexandre Levy, muito influenciado pela música do pianista alemão Robert Schumann (1810-1856), tornar-se-ia o compositor mais apreciado do Brasil. A música de Alexandre Levy mostra o quanto ele admirava Schumann. Suas obras são altamente originais e quase sempre construídas com temas populares (Tango Brasileiro) ou mesclam motivos folclóricos, tornando-se verdadeiro pioneiro do sentimento patriótico brasileiro.

Alexandre Levy foi um exímio compositor judeu-brasileiro que viveu e cresceu em ambiente cercado de músicos, além de seu pai ter fundado a primeira loja de música importante na vida cultural da cidade, como vimos acima. Além disso, a cultura francesa certamente o influenciou. Seu pai era francês e sua mãe, da parte francesa da Suíça.

O compositor também costumava dar títulos em francês a suas obras. Mas, apesar de sua formação ser fundamentalmente europeia, Alexandre Levy foi classificado por Mario de Andrade como o compositor mais caracteristicamente brasileiro, juntamente com os renomeados Antônio Carlos Gomes (1836-1896) e Alberto Nepomuceno (1864-1920). Segundo ele, outros grandes músicos, como Leopoldo Miguez (1850-1902), Henrique Oswald (1852-1923), Francisco Braga (1868-1945), João Gomes de Araújo, Barroso Neto (1881-1941) e Glauco Velásquez (1884-1914), em sua tentativa de compor “música brasileira” não conseguem libertar-se por completo das fortes tendências europeias.

Outra obra importante que precedeu as de Levy foi a rapsódia para piano “A Sertaneja”, do diplomata e compositor Brasílio Itiberê da Cunha (1848-1913), escrita em 1869. Mas a não utilização de fontes brasileiras não diminuiu em nada a relevância histórica de Levy, tal a excelência de suas composições.

Em 1887, Alexandre Levy foi à Europa para completar sua educação musical. Em Paris estudou harmonia e contraponto com Émile Durand, que seria professor de Claude Debussy. De volta a São Paulo, Alexandre compôs algumas obras-primas até sua misteriosa morte prematura. Ele não sofria de nenhum mal, mas subitamente faleceu, deixando uma produção surpreendente para quem viveu tão poucos anos. Era este “o anúncio de um gênio”, segundo o renomado escritor Mario de Andrade.

Fred Figner

Frederico (Fred) Figner nasceu em 1866 na Rua Teynska 37, em Milewsko, na região da Boêmia, antiga Checoslováquia, o coração do Império Austro-húngaro. Com apenas 13 anos, buscando ampliar seus horizontes, viajou até Bechim para aprender um ofício. Depois de dois anos e com o dinheiro justo para a travessia, chegou como imigrante a Bremershafen, e de lá embarcou a bordo do vapor Main, rumo aos Estados Unidos. Chega ao país no exato momento em que Thomas Alva Edison lançava um pequeno aparelho que registrava e reproduzia sons por intermédio de cilindros giratórios.

Fascinado pela novidade, adquiriu um desses equipamentos e vários rolos de gravação, embarcando com sua preciosa carga em outro navio rumo ao México, América Central e, finalmente, América do Sul. Em 1891 desembarcou em Belém do Pará, sem conhecer uma única palavra do português.

Nos primeiros anos no Brasil, percorreu parte do país, mas foi em Belém que Figner começou a apresentar o fonógrafo, uma novidade para o público, que pagava para registrar e escutar a própria voz. O sucesso foi imediato e, desde Belém se dirigiu para outras praças brasileiras, sempre com seu gravador a tiracolo.

Em 1897, já casado, com pouco mais de 30 anos, Fred Figner fez um tour por Manaus, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife e Salvador. Na sua chegada ao Rio de Janeiro, já falava e entendia um pouco do idioma português e, graças a seu fonógrafo havia feito algum dinheiro.

Em 1902, na cidade maravilhosa, Figner abriu sua primeira gravadora comercial, a Casa Edison. Os comerciais da Casa Edison eram famososEstabelecida em um dos sobrados da Rua Uruguaiana, a gravadora importava e comercializava esses primeiros fonógrafos. Desta forma, a empresa de Figner tornou-se pioneira na gravação e venda de música popular brasileira.

A casa Edison

Por essa mesma época, início do século 20, o cientista e inventor judeu, Emile Berliner (1851-1929), tinha acabado de lançar, nos Estados Unidos, o “disc record gramaphone”, um equipamento de gravação que utilizava discos revestidos com cera, de qualidade sonora superior ao do aparelho de Thomas A. Edison. Assim surgiriam a “Berliner Gramophone Company”, em 1895, a “Gramophone Company de Londres”, em 1897, a “Deutsche Grammophon de Hanover”, em 1898 e a “Berliner Gramophone Company de Montreal”, em 1899.

Fred Figner percebeu, de imediato, o potencial da nova invenção e transferiu seu próprio estabelecimento, de um sobrado da Rua Uruguaiana, para uma loja térrea na tradicional Rua do Ouvidor, onde abriu o primeiro estúdio de gravação e varejo de discos do Brasil, em 1900. No decorrer do século 20, e principalmente na época da Guerra Fria, a maioria dos músicos do Brasil sonhava em gravar seus discos de vinil com equipamentos da Casa Edison da Rua do Ouvidor.

A qualidade das gravações obtida através do fonógrafo de Figner permitiu o rápido crescimento da música brasileira, criando-se assim verdadeiros ícones musicais, nomes mundialmente conhecidos como o mestre Tom Jobim, Vinicius de Morais, Sérgio Mendes, João Gilberto, Chico Buarque de Hollanda, Caetano Veloso e sua irmã, Maria Betânia, Gilberto Gil e outros. A bossa nova estava ainda começando quando esses músicos tentavam projetar-se no mercado discográfico.

Primeiros discos

Os discos fabricados por Figner nessa fase inicial utilizavam cera de carnaúba, eram gravados em apenas uma das faces e tocados em vitrolas movidas por uma manivela. Apesar das notórias limitações técnicas, essa iniciativa representou uma verdadeira revolução para a música popular brasileira, que engatinhava, pois até então os artistas só podiam apresentar-se ao vivo ou comercializar suas criações por intermédio de partituras impressas.

O primeiro disco brasileiro foi gravado na Casa Edison pelo cantor e compositor Manuel Pedro dos Santos, o Bahiano, (1870-1944) por volta de 1902. Era o lundu “Isto é Bom”, de autoria do seu conterrâneo Xisto da Bahia (1841-1894), um destacado ator, cantor e compositor, aplaudido em 1880 no Rio de Janeiro pelo Imperador D. Pedro II. A partir daí, cada vez mais artistas começaram a gravar suas composições em discos distribuídos pela Casa Edison do Rio e também pela filial que Figner já abrira em São Paulo.

A procura pelos discos cresceu tanto que, em 1913, ele, homem de visão, decidiu instalar uma indústria fonográfica de grande porte na Avenida 28 de Setembro, na Vila Isabel, Rio de Janeiro, dando origem ao consagrado selo ODEON.

A Odeon Records foi uma gravadora fundada em 1903 em Berlim pelos sócios Max Strauss e Heinrich Zunz. Lançaram seu primeiro disco para gramofone em 1904. Em 1931, a Odeon Records fundiu-se com a representante da Columbia Records da Inglaterra, com a Electrola Records, HMV, Parlophone e outras marcas, para formar a EMI-Odeon.

Em 1936, o diretor da Odeon foi forçado a se aposentar, sendo substituído pelo Dr. Kepler, um membro do partido nazista. Em 1939, as empresas Odeon e Electrola eram dirigidas por administradores nazistas. Quando os russos liberaram Berlim, em 1945, eles destruíram grande parte da fábrica. Depois de 1945, encerrada a 2ª Guerra, a Odeon continuou a usar seu selo para impressões feitas para a África Oriental. Tratava-se de uma grande gravadora, com operações em vários países, com valioso acervo, muito cobiçado pelos colecionadores. Com o fim da Odeon, a EMI-Electric and Musical Industries Ltd, uma gravadora londrina com operações em 25 países, e uma das quatro maiores do mundo, ficou com a incumbência de continuar o trabalho da Odeon.

No Brasil a marca Odeon sobreviveu como uma subsidiária da EMI-Odeon até metade da década de 1980, quando acabou definitivamente.

A mansão Figner Retiro dos Artistas

Não há dúvida que Fred Figner era um homem à frente do seu tempo. Para coroar o sucesso nos negócios, este judeu checo, brasileiro por opção, decidiu erguer uma residência que espelhasse seu forte perfil empreendedor. A hoje conhecida “Mansão Figner” situada na Rua Marquês de Abrantes 99, no Flamengo, abriga o Centro Cultural Arte-Sesc e o restaurante Bistrô do Senac, por decisão de sua família.

A mansão é considerada um exemplo arquitetônico raro de “casa burguesa do início do século 20”. Fred Figner utilizou-a como hospital, em 1918, durante a fatal pandemia conhecida como Gripe Espanhola. Embora ele próprio tenha contraído a enfermidade, atuou como um prestativo auxiliar de enfermagem, transformando seu palacete em uma improvisada enfermaria de campanha que chegou a abrigar em seu interior quatorze pacientes.

Figner era um homem generoso e solidário. Pela natureza do trabalho nas suas duas gravadoras, se tornara amigo de músicos e cantores de sucesso. Em uma época que antecedeu à criação da Previdência Social, ele ficou consternado com a situação de penúria que alguns desses artistas enfrentaram ao chegar à velhice. Bastante sensibilizado com esse verdadeiro drama social, não titubeou e decidiu doar o terreno, em Jacarepaguá, para a construção da instituição Retiro dos Artistas, que funciona até os dias de hoje.

Em 19 de janeiro de 1947, Fred Figner faleceu no Rio de Janeiro, aos 81 anos de idade. Ao se abrir o testamento, nele foi constatado que havia destinado uma parte substancial dos seus bens às obras sociais de Chico Xavier. O jornal carioca A Noite Ilustrada publicou um editorial em que o judeu Frederico Figner foi honrado post-mortem com o título de “o mais brasileiro de todos os estrangeiros”. Sem dúvida, uma homenagem merecida para quem tanto fez pelo aprimoramento da música brasileira e mundial.

Bibliografia

Albin, R. Cravo, Dicionário Houaiss Ilustrado da Música Popular Brasileira. Criação e supervisão geral Ricardo Cravo Albin. Edição Instituto Antônio Houaiss, Instituto Cultural Cravo Albin e Editora Paracatu, Rio de Janeiro 2006.

Andrade, Mário de, Pequena História da Música. São Paulo 1942. Reimpressão: Editora Itatiaia 1987.

Behague, Gerard. The Beginnings of Musical Nationalism in Brazil. Monographs in Musicology, Detroit: Information Coordinators, 1971, n.1, p. 4-43.

Gottschalk, L. M., Complete Published Songs of Louis Moreau Gottschalk. Edited by Richard Jackson. Newton Centre. Massachussets 1993.

Porto-Alegre, Ignácio. Alexandre Levy: compositor e pianista brasileiro. Reimp. São Paulo: Casa Levy, s.d. [Polyanthéa publicada pela Gazeta Musical do Rio de Janeiro em 17 fev. 1892]

Tuma, Said. O nacional e o popular na música de Alexandre Levy: bases de um projeto de modernidade. São Paulo, 2008. 202 folhas. Mestrado em Musicologia.  Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.