Por que Hitler odiava judeus?

Austríaco de nascimento, nada indica que Adolf Hitler (1889-1945) tenha sofrido nas mãos de judeus durante sua conturbada adolescência. Pelo contrário, mesmo vivendo em Linz ou Viena na mais profunda miséria, os judeus o ajudaram naquele difícil período; a começar pelo Dr. Eduard Bloch (1872-1945), o médico judeu que tratou de sua família com total dedicação, especialmente de sua mãe Klara Pölzl, falecida de câncer em 1907, após intenso sofrimento. Frequentemente, Hitler se referiria a Bloch como “Edeljude”, o nobre judeu.

Adolf Hitler era um rapaz inteligente, porém mal-humorado. Por possuir um jeito boêmio teve problemas no exame de admissão à escola secundária de Linz, e foi reprovado por duas vezes. Ali começou a receber ideias pangermânicas, sustentadas por leituras que o professor Leopold Poetsch (1853-1942), antissemita de carteirinha admirado pelo jovem Hitler, lhe recomendou vivamente.

Em Linz, a terceira cidade da Áustria na qual Hitler viveu por poucos anos, não havia quase judeus. Os poucos que ali moravam, com o passar dos séculos e fruto da emancipação; se haviam europeizado e mantinham um aspecto físico parecido com o resto da população. A escola que frequentou não modificou para nada a visão sobre os judeus obtida pelo jovem Hitler. Na época dos estudos básicos, Adolf havia conhecido um colega judeu que era visto e tratado pelos demais membros de turma com certa prevenção, segundo ele “sem depositarem confiança nele devido a seu jeito taciturno”.

Em 1904, somente aos 15 anos de idade, Adolf deparou-se com a palavra jude, ligada em parte às acaloradas conversas sobre temas estritamente políticos. Certa vez desabafou abertamente: “Sentia contra isso (a questão judaica) uma ligeira repulsa e não podia evitar essa impressão desagradável que, aliás, sempre se apoderava de mim quando as discussões religiosas se travavam na minha presença. Nesse tempo eu não via a questão sob qualquer outro aspecto”.

A rigor, somente no capítulo II do Mein Kampf Hitler dá sua primeira opinião sobre os judeus de Linz: “Eu os tinha por alemães. Não me era possível compreender o erro desse julgamento, porque o único traço diferencial que neles via era o aspecto religioso diferente do nosso”. Poucas linhas depois, o futuro Führer conclui: “Minha condenação a manifestações contrárias a eles, a perseguição que se lhes movia, por motivos de religião como eu acreditava, levavam-me à irritação. Eu não pensava absolutamente na existência de um plano regular de combate aos judeus. Com essas ideias vim para Viena”.

VIENA COSMOPOLITA E ANTISSEMITA

Em Viena, o antissemitismo tinha-se desenvolvido das suas origens religiosas numa doutrina política, promovida por pessoas como Jörg Lanz von Liebenfels vulgarmente conhecido como Adolf Joseph Lanz (1874-1954), cujos panfletos “Ostara” foram lidos por Hitler; políticos como Karl Lueger (1844-1910), o Presidente da Câmara de Viena e líder do Partido Social Cristão, e Georg Ritter von Schönerer (1842-1921), o fundador do partido Pangermânico. Deles, Hitler adquiriu a crença numa superioridade total da raça ariana, que formava a base das suas visões políticas e na inimizade natural dos judeus face aos arianos, responsabilizando-os pelos sérios problemas econômicos alemães.

Com 18 anos de idade, Adolf era órfão e já morava em Viena, onde tinha uma vaga esperança de se tornar artista. Por ser austríaco tinha um subsídio para órfãos que acabaria por perder em 1910. Em 1907 fez exames de admissão à “Academia de Belas Artes de Viena”, sendo reprovado por duas vezes. Nos anos seguintes, permaneceu em Viena sem um emprego fixo; vivendo inicialmente do apoio financeiro de sua tia Johanna Pölzl, de quem recebeu uma herança. Chegou mesmo a pernoitar num asilo para mendigos no outono de 1909. Teve depois a ideia de copiar cartões-postais e pintar paisagens de Viena; uma ocupação com a qual conseguiu financiar o aluguel de um apartamento. Pintava cenas copiadas e as vendia a mercadores, simplesmente para ganhar seu dinheiro, não considerando suas pinturas uma forma de arte.

Ao contrário do mito popular, teve uma vida razoável como pintor, ganhando mais dinheiro do que se tivesse emprego fixo como empregado bancário, trabalhando menos horas. Durante seu tempo livre frequentava a Ópera de Viena, assistindo as óperas inspiradas na mitologia nórdica, composições de Richard Wagner (1813-1883), cujas produções, mais tarde na função de Führer-; iria financiar como meio de exaltação do nacionalismo germânico. Muito de seu tempo era dedicado também à leitura.

Desde 1909, para não morrer de frio e fome nas ruas de Viena, Hitler passou a dormir em abrigos noturnos financiados por benfeitores judeus. De forma paradoxal, ao mesmo tempo em que foi rejeitado na Akademie der Bildenden Künste Wien (Academia de Belas Artes de Viena) por judeus desta instituição; outros judeus foram os principais compradores das telas por ele pintadas. Para a Academia, Hitler tinha vocação para estudar arquitetura, mas não para cursar desenho artístico e pintura. A decisão dos membros judeus da Academia jamais foi aceita pelo futuro Führer e, para alguns historiadores, talvez tenha sido este o real motivo para acender o ódio gratuito aos judeus.

No entanto, em passagens da obra Mein Kampf, Hitler confessa não lembrar precisamente quando o termo jude surgiu nos seus pensamentos. Num trecho do capítulo II, intitulado “Anos de aprendizado e de sofrimento em Viena”, ele registra o seguinte: “Hoje me resulta difícil, senão impossível, dizer quando a palavra jude (judeu) pela primeira vez foi objeto de minhas reflexões. Em casa, durante a vida de meu pai, não me lembro de tê-la ouvido. Creio que ele já via nessa palavra a expressão de uma cultura retrógrada. No curso de sua vida, meu pai chegou a uma concepção mais ou menos cosmopolita do mundo, combinada a um nacionalismo radical que, também, exercia seus efeitos sobre mim”.

VIENA E OS JUDEUS

Viena era cosmopolita e nos traz um dado curioso e desconcertante: a maior parte dos atores de teatro e cantores de ópera preferidos de Hitler tinha origem judaica. Inclusive ele mesmo teve amigos judeus em Viena. Um de seus parceiros na cidade, Reinhold Hanisch (1884-1937), retratado pelo jovem Hitler, afirmaria: “Nesta época [em Viena] Hitler não tinha nada de antissemita. Ele se tornou depois”. Quando seria depois? O “depois” seria durante a 1ª Guerra Mundial, entre 1914-1918. Porém, se seus colegas de trincheiras se lembram de seus violentos ataques contra a monarquia austro-húngara, contra jesuítas, ciganos, comunistas e socialistas; ninguém parece ter notado qualquer manifestação de animosidade para com os judeus.

Contudo, na obra Mein Kampf, o futuro líder garante ter lido os panfletos antissemitas que circulavam em Viena durante a 1ª Guerra, ficando fortemente impressionado com os discursos populistas, antimarxistas, antieslavos e antissemitas do então prefeito da cidade Karl Lueger. Mais tarde, diz ter lhe despertado a atenção o fato de revolucionários marxistas alemães serem em sua maioria judeus; o que explica o antissemitismo reinante na Baviera, onde Hitler se estabeleceu.

Ainda em Viena, Hitler teve a oportunidade de ver judeus caminhando pelas artérias principais da cidade. Sua impressão não foi das melhores. Ele descreve este acontecimento: “Um dia em que passeava pelas ruas centrais da cidade, subitamente deparei com um indivíduo vestindo longo caftan e tendo pendidos da cabeça longos cachos pretos. Meu primeiro pensamento foi: Isso é um judeu? Em Linz eles não tinham as características externas da raça. Observei aquele homem, disfarçada e cuidadosamente, e quanto mais o contemplava mais me perguntava a mim mesmo: isso é também um alemão?”.

Em Mein Kampf, Hitler critica veementemente a aparência física dos judeus vieneses. Talvez seja este o trecho mais agressivo encontrado em toda sua obra. Ele comenta com acentuada ironia: “Que os judeus não eram amantes de banhos, podia-se assegurar pela aparência. Infelizmente não raro se chegava a essa conclusão até de olhos fechados. Muitas vezes, posteriormente, senti náuseas ante o odor desses indivíduos vestidos de caftan. A isso se acrescenta as roupas sujas e a aparência acovardada e tem-se o retrato fiel da raça. Tudo isso não era de molde a atrair simpatia. Quando, porém, ao lado dessa imundície física, se descobrissem as nódoas morais, maior seria a repugnância”.

“QUESTÃO JUDAICA” E SIONISMO

O primeiro discurso público de Adolf Hitler com acentuado conteúdo político antissemita foi pronunciado em agosto de 1919. Nele condenou o capitalismo, o socialismo e o marxismo, dos quais os judeus seriam grandes inspiradores. A partir de então, suas diatribes antissemitas se tornariam cada vez mais ferozes.

Também o Sionismo foi severamente criticado por Hitler. O movimento de libertação nacional do povo judeu teve vasta repercussão em Viena. Para o líder do Terceiro Reich somente uma pequena parte dos judeus apoiava as atitudes desta nova ideologia, enquanto uma maioria condenava e rejeitava o movimento. Após observação acurada, – escreve Hitler – “verifica-se que nem todos os judeus se identificam com o movimento, há o chamado judeu liberal que rejeita os pontos de vista dos sionistas; não porque esses não fossem judeus, mas por serem judeus que pertencem a um credo pouco prático e até perigoso para o próprio Judaísmo”.

Há pouco tempo foi descoberta uma carta de quatro páginas datilografada e assinada por Hitler, a “Carta Gemlich”, redigida em setembro de 1919, antes de começar a disputar o poder na Alemanha. Nela, pela primeira vez, o futuro Führer defende a expulsão imediata dos judeus do país. É sabido que Hitler fazia parte da unidade de propaganda militar que tinha como missão combater o comunismo entre os soldados que regressavam do front russo após a 1ª Guerra. Na ocasião, o capitão Karl Mayr (1883-1945) pediu a Hitler que respondesse a Adolf Gemlich, que insistia em saber qual era a posição do exército na polêmica “questão judaica”. Sua resposta foi contundente: “O objetivo final deve ser a remoção intransigente de todos os judeus”.

Ainda que Hitler em diversos discursos tivesse feito alusões a seus planos para exterminar judeus, poucas de suas idéias antissemitas foram encontradas em papel. Fica claro que Hitler já acreditava duas décadas antes do Holocausto que os judeus deveriam ser removidos. Esta importante carta foi achada pelo soldado americano William Ziegler num arquivo nazista perto da Nuremberg, nos últimos meses da guerra. Atualmente, fica exposta no Museu da Tolerância em Los Angeles.

Hitler chegou ao poder democraticamente em 30 de janeiro de 1933 e seu ódio aos judeus permaneceu intacto por 12 anos, até sua morte no bunker. O político conservador Hermann Rauschning (1887-1982), o terceiro Presidente do Senado de Danzig, em sua obra “Gespräche mit Hitler” (Conversas com Hitler) revela o seguinte: “Adolf Hitler me expôs certo dia a base de seu pensamento. Ele considerava o antissemitismo uma arma indispensável para levar nossa ofensiva política por toda parte, um meio de propaganda e de combate cujo efeito era irresistível… se o judeu não existisse, teríamos de inventá-lo”.

Assim, segundo palavras de Rauschning, o antissemitismo se tornou a arma suprema de Hitler. Isso explica também os primeiros excessos cometidos pelos fanáticos do partido em 1933, encorajados por nazistas como Joseph Goebbels, Julius Streicher e Alfred Rosenberg. Para eles os judeus tornaram-se facilmente os alvos preferenciais das SA (tropas de assalto nazistas), queimando-se a literatura judaica em praças públicas e depredando lojas e estabelecimentos comerciais; além de sofrer boicotes, pilhagens e incêndios.

Todo esse programa antijudaico instaurado pelo Terceiro Reich foi desastroso para a economia alemã e teve um efeito negativo no exterior. Hitler mesmo precisou intervir para acalmar a fúria de seus seguidores; atendendo as solicitações de seus ministros de Economia e das Relações Exteriores. No entanto, o Führer estava apenas adiando seus planos, como constatou seu amigo e companheiro Ernest “Putzi” Hanfstaengl.

Ernest Hanfstaengl (1887-1975), um alemão que ajudou Adolf Hitler a financiar a publicação do Mein Kampf e do jornal Volkischer Beobachter, veículo do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, havia sido contratado pela comunidade judaica americana, disposta a financiar a emigração de judeus alemães para Estados Unidos. Quando este alemão submeteu o projeto a Hitler, recebeu a seguinte resposta: “Não me faça perder tempo, Hanfstaengl, preciso dos judeus como reféns”.

Como o Führer era refém de sua própria propaganda e dos extremistas de seu partido, ele promoveu uma grande ação contra os judeus, que só não colocou em prática por causa dos imperativos da economia e do rearmamento pós-guerra. Ele teve que proibir as violências mais gritantes, mas os fanáticos tiveram sua revanche a partir de 15 de setembro 1935, com a promulgação das “Leis de Nüremberg”. A “Lei sobre a Cidadania Alemã” tirava dos judeus seus direitos cívicos, enquanto a “Lei de Proteção e Pureza do Sangue e da Honra Alemães” proibia os casamentos e as relações entre judeus e arianos.

Do dia para a noite, os judeus tornaram-se estrangeiros em seu próprio país. Aqueles que tinham suficientes meios econômicos deixaram Alemanha. Outros, menos privilegiados, não suspeitavam de que sua sorte iria piorar três anos depois, a partir da “Kristallnacht” acontecida entre 9 e 10 de novembro de 1938; quando lojas, comércios e casas de judeus foram destruídas em toda a Alemanha. Mas, Fritz Wiedemann (1891-1970), um ajudante de ordens de Hitler entre 1934 e 1938 viu o desastre se aproximar: “Jamais compreendi de onde provinha o ódio fanático de Hitler contra os judeus. No começo [ele] ainda adotava decisões mais moderadas, mas depois vieram outros períodos, – cada vez mais freqüentes -; em que seu ódio pelos judeus não conhecia mais limites”. Foram talvez esses acessos de fúria que culminaram na construção de Auschwitz, Majdanek e Treblinka.

PALAVRAS FINAIS

Conhecido como um dos maiores antissemitas de todos os tempos, Adolf Hitler não ergueu um sistema totalitário individualmente. O “Partido Nacional Socialista dos Trabalhados” por ele criado, e a colaboração incondicional de seus ministros, foram responsáveis diretos pela maior tragédia do século 20. Não foi suficiente criar estruturas e instituições que direcionassem seu ódio ao judeu, mas também participar ativamente de ditas instituições.

O ódio de Hitler aos judeus é fruto da profícua imaginação de um homem que contou com a preciosa ajuda de colaboradores. Não há dúvida também que o ódio de Adolf Hitler gerou manipuladores e manipulados, perpetradores e vítimas. Seu ódio foi o ingrediente principal para a construção do Nazismo, e todos aqueles que prestigiaram manifestações públicas e passeatas de caráter antissemita, possuem uma parcela de culpa pelos acontecimentos que nortearam a Europa entre 1933 e 1945.

O saldo final desse ódio é mundialmente conhecido. Seis milhões de judeus foram brutalmente assassinados pelos nazistas em campos de concentração e extermínio. O Holocausto do povo judeu ficará gravado na memória coletiva de toda a Humanidade.

BIBLIOGRAFIA

Fest, Joachim, Inside Hitler´s Bunker: The Last Days of Third Reich.

Hitler, Adolf, Mein Kampf. Berlim 1926. [Tradução ao português: Minha Luta. Precedido por uma história da ascenção, poder e crime do Nazismo, por Manuel S. Fonseca. São Paulo 2016].

Kershaw, Ian, Hitler: A Profile in Power, London, 1991, reprinted 2001.

Kershaw, Ian, Hitler, 1889-1936: Hubris, London, 1998.

Kershaw, Ian, Hitler, 1936-1945: Nemesis, London, 2000.

Shirer, William L., Ascensão e Queda do Terceiro Reich. Vol. 1: Triunfo e Consolidação 1933-1939. Tradução de Pedro Pomar. Agir Editora Ltda. Rio de Janeiro 2008, págs. 320-321.