Introdução
O romance “Dom Carlos de Lisboa” está baseado em fatos históricos, mantendo um discurso fiel à experiência de vida dos conversos, dos seus líderes e da sua dedicação em observar “Mitsvot da Torá”, preceitos que ancestrais guardavam há anos quando foram obrigados a abdicar da sua fé em 1497. A trama transcorre na rota Lisboa-Amsterdã, entre os anos 1632 e 1657. A primeira data coincide com a publicação da famosa obra “O Consolador” de Menashe Ben Israel e a segunda nos lembra o falecimento do rabino holandês. Na obra aparece a data 04 de abril de 1641, momento em que Dom Carlos visitou o rabino em Amsterdã.
Oito personagens compõem a narrativa de Chaim Eliav, são eles:
- O almirante Dom Carlos, a personagem central.
- O rabino Menashe Ben Israel (Manuel Dias Soeiro).
- Dona Beatriz Carneiro, mulher de Dom Carlos.
- O chefe da Inquisição Pedro João Manuel.
- O secretário da Inquisição Arnaldo da Fonseca.
- O líder dos conversos de Lisboa Arnaldo Rodrigues, aliás Raphael Chaim.
- O líder dos conversos de Porto, Rodrigues de Oliveira.
- Pedro Álvares, sobrinho de Dom Carlos.
Quem é Dom Carlos? Protagonista e figura principal, Dom Carlos Carneiro, filho de Dom Fernando Álvares, (cujo nome no Judaísmo é Isaac Ben Israel), trabalhou como Almirante da Marinha e era amigo do Rei de Portugal. Judaizante e líder da comunidade dos conversos em Lisboa, Dom Carlos era um homem respeitado, mantinha amizade com o sábio Menashe Ben Israel, e visitava com frequência Amsterdã. A Inquisição suspeitava de Dom Carlos trair o Cristianismo e, através de manobras inescrupulosas, estendeu uma armadilha para capturá-lo.
Dom Carlos de Lisboa é retratado como um patriota pelo monarca e como um traidor pela Inquisição. Patriota ou traidor, seus atributos e qualidades surgem de forma controversa através de uma rápida conversa entre o Rei de Portugal e um funcionário do Santo Ofício:
Rei: “Ele é um líder militar incomparável, um general supremo. A nossa gloriosa Marinha conseguiu, sob seu comando, liberar nossos navios mercantis da ameaça dos piratas… O acordo assinado por Dom Carlos com o governo holandês minou a possibilidade de os piratas fugirem para o porto de Amsterdã ou outros como ele” (ELIAV, p. 91).
Inquisição: “Mas, Dom Carlos fez outras coisas importantes em Amsterdã, coisas muito prejudiciais para o Reino. E Vossa Alteza, o príncipe, não entende que um ataque à Fé Católica e à autonomia das pessoas também é prejudicial ao Reino?! Este é um dano que em nada é menor do que o dano causado por um pirata! Vossa Alteza bem sabe que já havia uma sombra de suspeita sobre Dom Carlos” (ELIAV, p. 91).
A maior parte da pesquisa acadêmica aponta essa diferença de interesses entre o braço secular e o braço religioso. Ela ainda desvenda o dia a dia do converso, mas pouco revela acerca de seus vizinhos cristãos. Portanto, existe ainda um espaço aberto para recompor a vida cotidiana das comunidades da “Diáspora hispano-portuguesa”, principalmente no que tange à reconstrução através dos textos sagrados. (KAPLAN, Y., 1985, p. 197 – 224).
A reconstrução do “modus vivendi” dos conversos emerge dos “Processos de Inquisição” e das fontes ligadas a esta instituição clerical, como “Monitórios”, “Regimentos”, o “Index Librorum Proibitorum”, as “Listas de sentenciados nos Autos da Fé”, “Livros de Confissões e Denunciações” e “Sermões dos Autos de Fé”, dentre outros. (FAINGOLD, 2016, p. 93).
No movimento subterrâneo dos cristãos novos portugueses é possível detectar uma dinâmica muito clara de “ação e reação”. Como num tabuleiro de xadrez, a toda ação do converso segue-se uma reação imediata do tribunal do Santo Ofício da Inquisição. Vejamos a seguir, de forma sistemática, a forma em que interagem os perseguidos diante de uma estrutura político-religiosa como foi a Inquisição:
- O converso observa preceitos judaicos ou “mitsvot” durante sua vida.
- A Inquisição cria e mantém um “sistema de delações” no qual o converso deve ser descoberto e entregue de forma imediata.
- Diante do rigoroso sistema de delações, os conversos tentarão esquivar-se (burlar) das diretrizes do Santo Ofício.
- Obviamente, alguns cristãos novos judaizantes serão detidos e levados a um mundo subterrâneo composto pelos cárceres da Inquisição.
- A difícil situação nos porões e cárceres inquisitoriais irá gerar “resgates” de conversos das prisões.
- Os conversos resgatados não continuarão a viver na metrópole (Lisboa) e desenvolverão roteiros de fuga, longe das masmorras inquisitoriais.
- Os roteiros de fuga ajudarão a construir a “Diáspora hispano-portuguesa” na qual os conversos poderão voltar livremente ao Judaísmo. Principais centros de retorno à Lei de Moyses serão: França, Países Baixos, Amsterdã, Londres, Itália, o Império turco-otomano e as capitanias do Brasil colonial.
- A observância de mitsvot
A obra “Dom Carlos de Lisboa” relata o desejo dos conversos de salvar-se na Lei de Moyses. Isto não é apenas uma vontade individual, mas um anseio coletivo dos marranos lisboetas. O estudo dos “Livros de Denunciações do Santo Ofício de Lisboa” no século 16, nos permite revelar ritos e preceitos mantidos diariamente pelos judaizantes. A firme observância destes costumes milenares no seio de uma sociedade totalmente hostil surge como um “renascer de hábitos” diariamente reprimidos pela Inquisição. (FAINGOLD, R., 2016, p. 92-111).
O mundo dos preceitos judaicos ou “mitsvot” é enorme, mas a Inquisição enxerga ele como uma vida de heresia, repleta de transgressões e pecados. O “Édito de Graça” era um cartaz afixado nas portas das igrejas e praças. Nela aparecia a lista de preceitos judaicos para que todo cristão pudesse delatar o transgressor. Todos eram vistos como pecados contra o Cristianismo.
O documento conhecido como “Monitório” elenca ritos e costumes milenares observados pelos conversos: A guarda do Shabat, varrer a casa às avessas, fazer o abate casher (segundo o rito judaico), não ingerir carne de toucinho, observar o Yom Kipur ou “Grande Jejum”, recitar Salmos “Sem Gloria Patri, et Filii, et Spiritu Sancti” (sinal da Trindade), colocar tefilin (filactérias), realizar o Sêder na Pascoa preparando os pães ázimos, cumprir o jejum da “Rainha Esther”, respeitar os dias de luto, dar a benção de Efraim e Menasseh, (benção específica para filhos), fazer aos oito dias a circuncisão, limpar candeeiros às sextas feiras, celebrar a festa de Sucot (Festa dos Tabernáculos), vestir camisas brancas e limpas nos dias sagrados. (FAINGOLD, 2016, p. 94).
“Dom Carlos de Lisboa” registra em detalhes “um minian maravilhoso, mas uma tragédia terrível! Entre os participantes estavam também dois altos funcionários do ministro das finanças, comerciantes respeitáveis, um visitante do Brasil e algumas outras pessoas. Eles investigaram a todos e os torturaram por um ano inteiro, os malditos inquisidores… Todos confessaram seus pecados: confessaram que cumpriam Shabat, que jejuavam no Yom Kipur, confessaram que não comiam pão em Pessach e que jamais tinham provado o gosto da carne de porco” (ELIAV, p. 16-17).
A circuncisão foi um preceito decisivo na vida dos conversos que pretendiam tornar a viver como judeus plenos. Eles eram cientes dos perigos existentes e sabiam perfeitamente que os inquisidores conheciam o ritual. Também naquela época, a cerimônia era feita por um mohel, e inclusive temos descrições da festa que era preparada pelos familiares da criança, uma comemoração regada a vinho e cozidos. Vamos logo ao exemplo da obra:
“Mas, hoje tinham se sentido compelidos a vir a qualquer preço porque Roberto Machado, filho do prefeito Jaime Machado, decidiu se arriscar e introduzir o filho pequeno (com três meses) no pacto de Abraão… O mohel era Dom Carlos, que veio de Lisboa especialmente para cumprir esse mandamento. O bebê veio envolto em uma pequena manta de palha… Até vinho e cozidos as boas mulheres se preocuparam em trazer. Uma grande alegria reinava no jardim… Dom Carlos e outros convidados não se demoraram. Assim que o bebê chegou, prepararam-lhe a cerimônia de circuncisão. Roberto Machado, o pai, estava emocionado. Ele percebeu que tinha feito algo que se fosse descoberto o faria morrer com honra na fogueira. Mas ele sentiu uma grande alegria no coração, justamente por causa do risco envolvido. Aqui ele tinha o direito de praticar os mandamentos, não em paz e tranquilidade como em todas as comunidades judaicas, mas sob coação e medo. O mandamento realizado deste jeito ficava muito mais importante, santo e agradável aos olhos de D’us. Isso porque ele mostrava a devoção e o desejo de cumprir os mandamentos” (ELIAV, p. 63).
O preceito de colocar filacteras ou tefilin somente poderia ser feito dentro de casa ou em lugares despovoados, longe do olhar atento da Inquisição. A obra traz a benção dos tefilin: “Bendito és Tu, Eterno, Nosso D’us, Rei do Universo, que nos santificou com Seus mandamentos e nos ordenou colocar tefilin” (ELIAV, p. 52).
Em outra passagem do texto, Dom Carlos e o converso Rodrigues de Oliveira vão até um jardim para colocar tefilin. Eis a conversa: “Logo mais o dia vai raiar – disse Rodrigues para Dom Carlos, com um sorriso largo no rosto – e então poderemos cumprir o mandamento dos tefilin. Os olhos de Dom Carlos se iluminaram. Desde que Arnaldo Rodrigues tinha sido pego e, junto com ele, um grande grupo de marranos, já não se encontravam mais tefilin em Lisboa. Os vilões os tinham confiscado de um porão que servia de sinagoga e apenas dois pares de tefilin haviam sobrado” (ELIAV, p. 46).
Pouco conhecido é o hábito de esconder tefilim nas árvores. Dentro de um jardim público aconteceu a seguinte cena: “Rodrigues foi até uma das árvores, removeu cuidadosamente um pedaço de madeira do tronco, e do lugar oco retirou um par de tefilin. Estes são os tefilin – ele disse com um sorriso – que eu consegui salvar da igreja naquela misericordiosa noite. Com a sua licença, João Batista, vamos homenagear os ilustres convidados de Lisboa deixando eles colocarem os tefilin primeiro, certo?” (ELIAV, p. 51).
Assistimos também à colocação de tefilim por parte de Dom Carlos; preceito realizado conjuntamente com professores da Universidade de Coimbra. Meses depois os professores foram torturados e queimados: “No rosto de Dom Carlos era visível uma forte emoção. Já havia tempo desde que tinha posto os tefilin pela última vez. Fora há dois anos na Universidade de Coimbra, quando deu uma palestra sobre a força da Marinha portuguesa. Em seguida, ele foi convidado por professores para uma refeição festiva, no final da qual, poucos minutos antes do pôr do sol, trouxeram-lhe tefilin para ele colocar. Sem dizer nada a eles, e até hoje ele não sabe como, esses professores sabiam que ele, Dom Carlos, era um judeu em segredo como eles. Alguns meses depois, lembrou-se com pesar, no momento de receber das mãos de Rodrigues os tefilin, de quando aqueles professores foram pegos, e, depois de torturas, queimados como mártires” (ELIAV, p. 52).
A Pascoa judaica dos conversos acontecia frequentemente em porões escuros e úmidos; lugares afastados dos inquisidores. Há um certo momento em que Dom Carlos procura sua esposa Beatriz, quem se encontra no porão da residência do casal:
“Dom Carlos sabia bem de qual porão ela estava falando. Era o porão secreto deles, no qual tinham preparado por anos, para todos os membros da pequena comunidade, o Sêder de Pessach (às vezes ocorria vários dias antes da data real, quando suspeitavam que os detetives da Inquisição os estavam seguindo na noite de 15 de Nissan). Era o porão onde mais de uma vez rezas foram pronunciadas, quando outros locais secretos mostravam-se perigosos. Neste porão tinham ocultado várias vezes cristãos, que depois foram descobertos por serem judeus incógnitos, e que precisavam se esconder de todos até as suspeitas passarem” (ELIAV, p. 161).
- A impressão de obras sagradas
Na Península Ibérica, a proibição imposta aos conversos de imprimir e difundir obras sagradas era total. Não obstante, a carência de textos hebraicos nunca foi obstáculo para os conversos lusos. Desde a mais tenra idade, eles aprendiam a decorar rezas extraídas de citações bíblicas, especialmente dos Salmos. Assim, o texto sagrado passava de geração em geração.
Naturalmente, a situação gerada pela conversão forçada do ano 1497 aumentou a proibição de utilizar textos com caracteres hebraicos. Perante essa forte censura inquisitorial, as primeiras Bíblias impressas com caracteres latinos; denominadas em Portugal de Brívias, tiveram um papel fundamental na difusão do Judaísmo.
Os livros sagrados eram contrabandeados para o interior de Portugal longe da vigilância dos funcionários da Inquisição. Em curta passagem, Dom Carlos fez uma confissão sincera a Menashe Ben Israel: “Espero que entre a mercadoria estejam escondidos também os Pentateucos e, em particular, o seu importante e precioso livro, “O Conciliador”. Você não sabe quantas pessoas em Portugal foram salvas da heresia e da apostasia por causa deste seu livro. É preciso seguir em frente, Rabi Menashe, e D’us nos ajudará!” (ELIAV, p. 19)
Um episódio que ensina acerca da vontade dos conversos em estudar os textos bíblicos, está vinculado ao contrabando de Bíblias com letras hebraicas dentro de Portugal e desde Lisboa até as colônias d´além-mar: Goa, Cochim e Brasil.
Em 1505, chegou Francisco Pinheiro a Cochim (Índia), com um caixão repleto de Bíblias hebraicas confiscadas de esnogas ou sinagogas. Francisco comercializou estas Bíblias por grandes quantias. Nesse tempo, morava em Cochim uma cristã-nova que teria ajudado Francisco na venda dessas obras. As notícias sobre esta comercialização de Bíblias na Índia chegaram aos ouvidos de Dom Francisco d´Almeida, alto funcionário da corte lusitana. Em pouco espaço de tempo, o cortesão ordenou encerrar por completo esta atividade, confiscando o caixão com todos os livros sagrados. (FAINGOLD, 2016, p. 99-100).
Nos séculos 16 e 17 o esquema de contrabando de livros hebraicos era meticuloso e sofisticado; envolvendo marinheiros e trabalhadores dos portos de Amsterdã e Lisboa. Devia ser evitado qualquer tipo de problema alfandegário, permitindo que a mercadoria chegasse à porto seguro. O testemunho de Eliav é contundente: “Eram dois carregadores do porto, marinheiros do grupo dos marranos que trabalhavam no navio Vera Cruz, no qual ele, Dom Carlos, era o comandante. A função deles era se certificar de que os livros sagrados que o Rabi Menashe Ben Israel dera em Amsterdã chegassem sem contratempos a Lisboa, até a casa de Dom Carlos. E, de fato, eles tinham chegado. Os livros estavam escondidos no caixote que os dois carregadores tinham trazido consigo” (ELIAV, p. 28).
Enterrar pertences judaicas, principalmente livros com caracteres hebraicos que os comprometiam, era um fenômeno frequente. Beatriz, a esposa de Dom Carlos, com medo de uma devassa da Inquisição, revela a seu marido:
“- Meu coração de mulher me diz que estamos em apuros. Decidi, portanto, limpar o porão de todo vestígio judaico. Não fique com raiva de mim. Mas eu enterrei os livros de orações e o talit. Eu sei onde. Assim, se o vento de misericórdia soprar sobre nós, e se D’us tiver piedade, poderemos encontrá-los. Mas, agora, estou com medo, Carlos. Se novamente eles vierem à nossa casa eu não quero que possam encontrar algo em que basear as suas acusações satânicas. Eu estava no meio do trabalho quando você me chamou. Desculpe-me” (ELIAV, p. 162).
A Diáspora hispano-portuguesa, originária das expulsões e batismos forçados de 1497 e seguidamente com o estabelecimento do Tribunal da Inquisição em 1536; foi crescendo exponencialmente com o passar do tempo. Abandonar as terras de idolatria era o sonho acalentado por qualquer judaizante. Em Amsterdã, por exemplo, durante uma visita ao rabino Menashe Ben Israel, Dom Carlos afirmou: “A Diáspora se torna mais difícil e amarga a cada dia que passa. Quem dera tivesse a possibilidade e a oportunidade de sair de lá (Lisboa) e vir morar aqui em Amsterdã, cidade que não sabe o que é sofrimento, perseguição, intolerância, que promove a aceitação e onde se pode cumprir os mandamentos abertamente e sem medo” (ELIAV, p. 13-14).
As pesquisas focadas no estilo de vida judaico seguido pelos cristãos novos, pouco revelam acerca da forma em que estes se reconheciam; embora a maioria dos estudos sugerem haver códigos ou sinais combinados a priori que permitiam que estes se reconheçam como judeus. Um deles era visitar seus correligionários dando um número determinado de batidas na porta. Vejamos como aparece isto no texto “Dom Carlos de Lisboa”:
“Dom Carlos parou não muito longe do portão. Por precaução, olhou ao redor, analisando através da neblina para ver se ninguém o seguia. Aproximou-se do portão, e deu três batidas curtas e ritmadas. Depois de um minuto, deu mais três batidas, voltou a esperar cerca de um minuto e finalmente deu mais quatro batidas. Este era o sinal combinado” (ELIAV, p. 12).
E na hora do interrogatório da Inquisição, o secretário Arnaldo de Fonseca, numa dura conversa dirigida a Dom Carlos, afirma: “Exatamente o número de batidas que você deu à porta do desprezível infiel que, aparentemente, era um sinal combinado entre vocês, e as quatro horas que você ficou dentro da casa dele!” (ELIAV, p. 204).
Por vezes, as próprias orações serviam para identificar se como membros de uma determinada comunidade ou ajuntamento de judeus. E, naturalmente, a prece “Shema Israel” (Ouve Israel) aparece como a preferida dos conversos: “Os padres sentiram que Alfonso não acreditava mais neles. O medo e a tensão estavam estampados em seu rosto. O jovem monge inclinou-se e aproximou a boca do ouvido de Alfonso e sussurrou: Shemá Israel Hashem Elokênu Hashem Echad. Alfonso não se moveu. É verdade, este versículo era um sinal entre os marranos, quando eles queriam se identificar como irmãos” (ELIAV, p. 86).
- O funcionamento das delações
A superioridade da Inquisição ficou estabelecida através de um apurado sistema de delações criado especialmente para detectar o maior número possível de cristãos novos. O braço secular representado pelo rei de Portugal depositava a responsabilidade pelas devassas ao braço clerical, representado exclusivamente pelo Inquisidor e seus fiéis funcionários. Em fala entre funcionários da Inquisição o medo a Dom Carlos Carneiro é latente:
“- Caros amigos, vocês estão certos. As coisas não são simples. Estou muito, muito desconfiado de que o rei nos deu a permissão de investigar o que está acontecendo na casa de Dom Carlos pois ele está convencido de que não vamos encontrar nada. E que, então, Dom Carlos vai se opor a nós com toda a sua influência. Ele certamente é capaz de nos atingir, a nossa força e a nossa liberdade. Ele é muito forte. Eu acho que o rei quer que percamos um pouco de nossa influência. Vocês sabem que ele mesmo, o próprio rei, tem medo de nós?!” (ELIAV, p. 58).
Importante dizer que as delações permitiram que a Inquisição pudesse conduzir investigações, realizar diversos julgamentos e inclusive emitir sentenças a réus tidos como hereges. Nesta linha precisamos indagar o que era a autodenúncia?
Basicamente, é a denúncia de um converso que conta suas próprias culpas ou transgressões religiosas. Ela é fruto de contatos rápidos com pessoas próximas. O denunciante era obrigado a informar ao tribunal hábitos judaicos de familiares, amigos ou conhecidos.
Importante registrar que nem sempre os inquisidores aceitavam a autodenúncia. Assim, temos delações em que esposas denunciam maridos e filhos que, por sua vez, entregam pais por ensinarem ritos e preceitos judaicos. Desta forma, foi-se consolidando uma complexa rede de denúncias, que ficava à disposição de um sofisticado esquema. Na obra analisada, o protagonista Dom Carlos Carneiro será denunciado à Inquisição pelo seu sobrinho Pedro Álvares, filho de Roberto Carneiro, irmão de Dom Carlos.
Muitas foram as vezes em que um cristão velho denunciava um cristão novo. Era a modalidade mais frequente na época. Geralmente, as motivações para este tipo de denúncias eram de caráter social ou econômica: a cobiça e a inveja originadas da forte concorrência diária entre pessoas. Há ainda motivações religiosas, fruto de uma propaganda sistemática imposta à população por círculos vinculados à Igreja Católica.
Um cristão novo denunciar um outro cristão novo era o fenômeno mais comum na sociedade lusitana. Tendo como principal meta a sua libertação, o denunciante entregava ao santo tribunal seus amigos e vizinhos. Para atingir um número considerável de denúncias, o tribunal inquisitorial fazia falsas promessas ao denunciante, promessas que jamais iria cumprir. Colaborar com o tribunal era uma conduta normal, aceita com frequência nos momentos de forte medo e pressão.
- Era possível driblar a Inquisição?
Certamente, esta é uma das perguntas mais difíceis de responder. Há momentos em que era impossível esquivar-se das perseguições inquisitoriais e há momentos em que ficava mais fácil fazê-lo. Afinal, a caça aos cristãos novos não se limitava a um determinado espaço territorial, mas acontecia em todo o território nacional. O temor do judaizante de ser capturado era enorme; tal qual aparece num trecho:
“Em todos os cantos de Portugal continuava, na época, a caça aos cristãos novos, cuja maioria continuava a seguir o Judaísmo em segredo. E Dom Carlos tinha medo… Depois de alguns minutos, o condutor saiu lentamente do seu local, olhou para ambos os lados e quando teve certeza de que ninguém o observava, abriu a porta da carruagem, ergueu o assento e puxou uma pesada arca que ocultava um pacote de livros” (ELIAV, p. 46).
Nos círculos dos cristãos novos o medo de ser flagrado por denúncias era uma constante. A infiltração de cristãos novos na sociedade portuguesa existiu. Isto é fato. No entanto, fica difícil poder quantificar e determinar em que porcentagens. De fato, desde o momento em que o judeu se converte ao Cristianismo, ele está teoricamente apto para atuar nas diferentes áreas da sociedade. E por mais que os cristãos quisessem obstaculizar o ingresso de conversos nas instituições, eles conseguiam rapidamente infiltrar-se. Vejamos a seguir um trecho em que dois carcereiros aparecem conversando pejorativamente sobre dois chefões do Santo Ofício, João Pedro Manuel e Arnaldo de Fonseca:
“- Você está certo! Eles já serviram com lealdade a nossa fé. Não se pode tirar deles o que eles já conquistaram. Hoje, Lisboa está limpa da marca que esses porcos judeus deixaram. Em todos os lugares conseguiram achar estes impostores. No Exército, no governo, na Universidade”
Havia em Portugal conversos que viviam falsamente segundo a lei de Cristo, conseguindo inclusive inserir-se em cargos específicos do próprio Santo Ofício: “A ajuda que eu estou dando para salvar um judeu como você do amargor da morte da Igreja, servirá como meio de expiar os meus pecados, pois embora eu tenha voltado de todo o coração ao Judaísmo dos meus pais, eu continuo a viver a minha vida à sombra da cruz de mentira, e até mesmo a serviço da Inquisição” (ELIAV, p. 69).
E numa outra passagem: “Ele ouviu em Amsterdã, segundo o que me contou, que nas instituições da Inquisição em Portugal há marranos, e que eles avisam àqueles de quem o Santo Ofício suspeita. Assim, eles conseguem escapar antes de serem presos. E desta forma evitam o castigo que merecem por sua traição à santa fé” (ELIAV, pág. 35, BEINART, 1961, p. 167-192).
- O mundo subterrâneo dos cárceres
Com a destruição das comunidades judaicas não restaram sinagogas em pé, e os conversos deverão se adequar a uma nova realidade face às conversões forçadas. O maior problema agora será encontrar lugares seguros para poder observar ritos e preceitos, especialmente aqueles em que é necessária uma sinagoga ou espaços públicos. Comumente, os conversos congregavam-se em residências particulares; onde podiam sentir segurança diante das ameaças externas. Unidos por um destino comum, surgem verdadeiros “círculos de conversos”. Estas células se localizavam na totalidade do território lusitano, constituindo um fenômeno que nos ensina acerca da força dos convertidos no seu estilo judaico de viver (FAINGOLD, 2016, p. 96-99).
O prédio da Inquisição e os tormentos aplicados aos hereges são citados no texto de Eliav. O autor comenta que era bastante frequente ouvir gritos de dor vindos dos cárceres, a ponto de os transeuntes evitarem passar frente ao prédio: “De vez em quando se podia ouvir com clareza, através das altas muralhas que circundavam o edifício, os gritos agoniados de dor, que deixavam entrever as terríveis torturas que eram feitas lá dentro e que os marranos sofriam quando eram descobertos como judeus que cumpriam as mitsvot. Os moradores da cidade faziam de tudo para evitar passar pela rua que ficava ao lado deste temível edifício” (ELIAV, p. 21).
Os autos de fé realizados em Lisboa decorriam em praças públicas e outros locais muito frequentados, contando com a presença das autoridades eclesiástica e civil. Um auto de fé era uma cerimónia com pompa, uma demonstração do poderio dos inquisidores. Ao mesmo tempo, era uma festa popular, anual e dispendiosa. O povo era convidado e assistia levando petiscos como para um piquenique. Na obra há uma fala entre dois carcereiros no exato momento em que era resgatado o cristão novo Arnaldo Rodrigues:
“- O que eles estão esperando? Por que não o levam logo para fogueira do auto de fé? Dois anos já se passaram desde o último auto de fé. A multidão anseia por algo que os anime. Alguém que também espante estes cristãos-novos outra vez para suas tocas. O atrevimento deles passou todos os limites nos últimos tempos!” (ELIAV, p. 154).
Numa passagem do livro “Dom Carlos de Lisboa”, o inquisidor Pedro João Manuel se dirige ao secretário da Inquisição Dom Arnaldo da Fonseca: “Me escute com atenção, Arnaldo. Se investigarmos este episódio como devemos, se rastrearmos cuidadosamente todos os atos deste Dom Carlos, e se realmente descobrirmos que ele se encontrou com o herege Menashe Ben Israel… Lisboa terá um auto de fé como nunca se viu antes! Nós vamos queimá-lo em praça pública e nem mesmo o rei conseguirá salvá-lo de nossas mãos! O que você acha disso, Fonseca? Algo assim não acontece todo dia!” (ELIAV, p. 25).
Quem era Arnaldo Rodrigues, líder dos conversos de Lisboa? Arnaldo Rodrigues era amigo de Menashe ben Israel. Ele foi criado em Amsterdã. Por anos os dois tinham sido parceiros de estudo, se aprofundando na Torá, Talmud e Halachá. Rabi Menashe pediu que Arnaldo voltasse a Portugal e desistindo de uma vida judaica plena em Amsterdã, vivendo novamente como um marrano em Lisboa. Isto é, viver abertamente como cristão católico, mas como um judeu escondido. Este pedido ia teoricamente na contramão da história, pois o essencial era deixar a capital portuguesa e não uma Amsterdã tolerante. No entanto, achamos que o sábio judeu radicado na Holanda pedira isso ao amigo, pois acreditava que a força da sua personalidade corajosa era necessária para ajudar àqueles que continuavam a guardar a Torá e cumprir as mitsvot, embora em segredo e sob as duras condições em que se encontravam.
Porém, Arnaldo Rodrigues, aliás Raphael Chaim, foi pego pela Inquisição em Purim, precisamente durante a leitura da Meguilat Esther. Num curto espaço de tempo, seria elaborado um plano de resgate para liberá-lo das garras do Santo Ofício. O converso Alfonso Rodrigues fala para Arnaldo Rodrigues no cárcere:
“- Arnaldo, ouça! Dom Carlos decidiu, depois que voltou de Amsterdã, fazer de tudo para salvar você. Arnaldo, a salvação de D’us ocorre em um piscar de olhos, já existe um plano. Dom Carlos em poucos dias partirá, liderando uma expedição ao Brasil, e você estará a bordo” (ELIAV, p. 42).
Testemunhamos aqui uma arriscada operação de resgate do líder dos conversos lisboetas rumo à Amsterdã. O navio de Dom Carlos o levaria até a cidade de Menashe Ben Israel. O traslado do líder dos conversos Arnaldo Rodrigues da carruagem para dentro do navio foi uma verdadeira operação de guerra:
“As portas da carruagem abriram-se dos dois lados… Sem dizerem uma palavra e sem barulho algum, a caixa foi retirada da carruagem pelos quatro marinheiros que desceram do navio. Lenta e cuidadosamente, colocaram-na sobre os ombros, e subiram com a preciosa carga a rampa que conduzia ao convés superior. Os marinheiros sabiam que o líder resgatado das mãos da Inquisição estava na caixa. Eles sentiram a importância da missão sagrada que lhes tinha sido incumbida” (ELIAV, p. 159).
Eliav descreve ainda a fuga do líder dos conversos do Porto: “A carruagem em que estava Dom Carlos disparou para o norte. Antes do amanhecer tinha que chegar ao Porto, a grande cidade no norte de Portugal. Ao seu lado, naquela carruagem estava Rodrigues de Oliveira, o líder dos marranos no Porto e redondezas. Durante todo o caminho ambos ficaram em silêncio, apesar da carruagem também ser de irmãos marranos” (ELIAV, p. 45).
Comumente, os cristãos-novos congregavam-se em residências; espaços físicos nos quais podiam sentir um pouco de segurança diante das ameaças externas. Unidos por um destino comum, detectamos diversos “círculos de conversos”, congregados diariamente. Nossa pesquisa, centrada no século 16, revela também a incerteza existencial de comunidades inteiras que saíram do Judaísmo, mas não conseguiram ingressar no Cristianismo. Estas células localizadas no território lusitano, representam um fenômeno único que demostra claramente a força dos conversos no seu estilo judaico de viver (FAINGOLD, 2016, p. 92-111).
Liderar uma comunidade de conversos judaizantes era motivo de orgulho para Arnaldo Rodrigues quem disse a Menashe Ben Israel: “É preciso fazer alguma coisa, e eu estou pronto para assumir esta função. E se eu não voltar de lá, por favor, cuide da minha esposa Cecília e dos meus três filhos, certificando-se de que eles continuem a crescer como judeus, e… diga a eles quem foi o pai deles”. Foi assim que surgiu o movimento de resistência clandestino dos judeus de Portugal. E agora, tudo estava em risco. Arnaldo tinha sido preso… (ELIAV, p. 18).
Importante lembrar os diferentes roteiros de fuga dos cristãos novos lusitanos; itinerários distantes que se espalhavam pelas estradas da Europa, África, Ásia e as Américas. Achar sossego num porto seguro era para qualquer converso uma garantia de poder observar seus preceitos milenares.
- Roteiros de fuga
A saída dos cristãos novos da Península Ibérica criou uma “Diáspora hispano-portuguesa” com uma quantidade de rotas de fuga. Nessas rotas foram surgindo comunidades de conversos em que seus membros guardavam com segurança ritos e preceitos, ingressando e adaptando-se ao novo lar. Um cristão novo ajudava outro nesse árduo processo de adaptação. Esta realidade pode ser observada em cidades da Europa, Ásia e Oriente Médio como Rouen, Nantes, Bordeaux, Londres, Antuérpia, Pisa, Pesaro, Livorno, Ancona, Ferrara, Módena, Veneza, Amsterdã, Hamburgo, Salônica, Istambul, Izmir, Goa, Cochim e Safed (FAINGOLD, 1991, p. 235-259).
Eis as palavras de Dom Carlos na procura de uma cidade segura para fugir de Portugal:
“Se D’us nos ajudar e conseguirmos tirar Rafael Chaim da mão da sangrenta Inquisição, talvez encontremos o caminho para uma cidade segura, onde possamos viver como judeus. Não acho que Amsterdã seja boa para nós. Eu sou muito conhecido e Amsterdã está repleta de espiões católicos. Talvez Antuérpia, ou Veneza. E talvez, só talvez, possamos fugir justamente para Israel…” (ELIAV, pág. 108 e FAINGOLD, 2020, p. 32-39.
O próprio rabino holandês Menashe ben Israel, nascido na ilha de Madeira em 1604, aparece citado com seu nome cristão num processo de Inquisição: “… e, além disso, a testemunha declarou que há cerca de oito ou nove anos ela viu na cidade de Amsterdã …. na sinagoga dos judeus, um ‘cristão-novo’ vestido com um manto branco, que é um sinal usado entre os judeus para mostrar que estão na sinagoga deles. Quando a testemunha começou a conversar com o judeu português supracitado, o estranho lhe informou que o seu nome era Manuel Dias Soeiro, e que tinha nascido na Ilha da Madeira. Depois disso, a testemunha ouviu de terceiros que aquele cristão-novo de fato se chamava assim e que realmente tinha nascido naquela ilha. No entanto, na cidade mencionada ele tinha um nome hebraico: Menashe Ben Israel, e ele mesmo ocupava o cargo de rabino e professor da religião de Moisés. Ele contou à testemunha que expediu duas arcas cheias de livros de sua própria autoria. Uma delas foi para a Espanha e a outra para o Brasil. O nome do livro é “Comentários sobre as Sagradas Escrituras”. A testemunha tem com ela uma cópia do livro mencionado e agora ele se encontra retido na alfândega. A testemunha trará o livro e o apresentará perante o tribunal…” (ELIAV, p. 22-23).
Amsterdã era no século 17 o destino preferido dos cristãos novos portugueses. Em tempos de mercantilismo, a metrópole holandesa oferecia tolerância religiosa e progresso econômico. Em conversa entre funcionários da Inquisição, um deles de nome Octávio, comenta:
“- Eu acho que o assunto da reunião com Dom Carlos deve ser Amsterdã – sugeriu Octávio.
– Amsterdã!? — Disse admirado De Fonseca.
– Sim, sim, Amsterdã! Dom Carlos visitou o local várias vezes. Vamos dizer para ele que queremos sua ajuda para podemos obter informações sobre marranos que fugiram para lá e voltaram ao Judaísmo” (ELIAV, p. 60).
- A vinda dos conversos ao Brasil
A descoberta do Brasil em 1500 contou com a presença empreendedora dos cristãos novos. A Capitania de Pernambuco, ao nordeste do Brasil, foi no século 17 alvo do colonialismo holandês e Recife foi refúgio de judeus vindos de Amsterdã. Eles estabeleceram nos trópicos comunidades judaicas, dentre elas a Zur Israel em 1637. Suas instalações abrigaram a primeira sinagoga das Américas e atualmente hospedam o Arquivo Histórico Judaico de Pernambuco, no centro histórico de Recife. (VAINFAS, 2010).
Eliav lembra esse momento dos cristãos novos no Brasil colonial através de uma curiosa conversa entre Luís e comandante do navio, pouco antes de partir Dom Carlos rumo à Terra de Santa Cruz:
“- Oh, eu entendo, o senhor quer saber nossos nomes? Por favor, tudo bem! Bem, meu nome é Alfonso Neves, e eu sou um padre, cujo mandato é em Coimbra. Agora, eu preciso ir para o Rio de Janeiro, no Brasil. Lá, quero ajudar um amigo meu no culto da igreja local, e organizar as atividades da Inquisição. Há muitos “cristãos-novos” que emigraram para aquele país. Quem sabe se lá eles não estão maculando o bom nome da Igreja e retornando à sua apostasia ancestral judaica? Temos de reforçar a nossa vigilância sobre eles. Não estou certo, senhor?! O senhor não pensa assim?! E, talvez, também possamos levar a mensagem da cruz para os selvagens de pele vermelha, os nativos do próprio Brasil. Aqui, senhor, estão todas as aprovações necessárias, indicando que fomos enviados pelas instituições da Igreja” (ELIAV, p. 172-173).
Numa das falas, Dom Carlos comenta a chegada do líder dos cristãos novos de Lisboa Arnaldo Rodrigues (aliás Raphael Chaim) ao nordeste brasileiro: “Parte da Marinha viajará daqui a poucos dias ao Brasil, para as colônias do norte sob o controle do nosso país, e Arnaldo será levado escondido em um dos navios. O plano ainda é confidencial. Eu não quero falar sobre ele…” (ELIAV, p. 51).
Um número considerável de navios partia anualmente rumo ao distante Brasil, transportando mercancias e figuras comunitárias, principalmente rabinos que iriam desempenhar cargos nas novas comunidades. Desta forma chegaram até Recife os rabinos Raphael D´Aguilar e Isaac Aboab da Fonseca. Eis o trecho da conversa acontecida nos cárceres em que o prisioneiro é comunicado que será removido e conduzido a Holanda:
“Amanhã, Rafael Chaim, vamos levá-lo embora daqui. A fragata Vera Cruz está prestes a partir para o Brasil, e ela vai levá-lo para o Recife, para Rabi Isaac Aboab, que você provavelmente conhece de Amsterdã. Ele é o rabino da cidade. Sim, sim, os holandeses ocuparam o local, mas o nosso rei fez uma aliança temporária com os holandeses, para permitir que nossos navios pudessem atracar lá. Já pensou que esse pacto veio dos céus para que pudéssemos levar você para lá? Você está me ouvindo?!” (ELIAV, p. 68)
Palavras finais
Extensa pesquisa foi realizada sobre a Inquisição e o modo indescritivelmente cruel que ela usava para converter judeus ao Cristianismo. Não era fácil resistir a esta lubrificada máquina de tortura e morte. Nesta luta interminável é possível detectar três grupos bem definidos:
Um primeiro grupo representado por judeus exilados que recusaram converter-se a outra religião e rapidamente sucumbiram.
Outros constituem um segundo grupo que não resistiu às brutais perseguições e se converteu à Lei de Cristo, frequentando igrejas e vivendo uma vida plena nesta nova religião.
E o terceiro grupo estava composto pelos que foram batizados à força sob ameaça de morte, porém mantiveram as práticas judaicas em secreto, clandestinamente. Sobre este último grupo trata a obra “Dom Carlos de Lisboa” de Chaim Eliav.
Mas não foi a Inquisição que inaugurou essa atmosfera de perseguição e terror. Ela já aconteceu antes na história, talvez em escala menor: na Espanha do século 7; na época das Cruzadas durante os séculos 11-13, e ainda quando comunidades judaicas do Mediterrâneo tiveram que aceitar o Islã como sua religião e Maomé como seu profeta sob ameaças de morte.
O denominador comum em todas essas histórias de perseguições é que não se consegue erradicar o Judaísmo de forma intrínseca, pois o Judaísmo é um legado eterno, fica ligado à alma judaica e seus ensinamentos milenares não conseguem separar-se deles.
A narrativa histórica de “Dom Carlos de Lisboa” prende à atenção do leitor até a última página, colocando-o em contato com toda essa luta de fé, determinação e confiança dos conversos no Todo-poderoso. Leitura obrigatória, traz a história de verdadeiros mártires que optaram passar pelas mais terríveis torturas nos fétidos calabouços da Inquisição a ter que abandonar o D’us de Israel.
Referências bibliográficas
BEINART, H., The Judaizing Movement in the Order of San Jeronimo in Castile. SCRIPTA HIEROSOLYMITANA, vol. 7 (1961), pp. 167-192.
ELIAV, CH., Dom Carlos de Lisboa, Editora Maayanot, São Paulo 2019.
FAINGOLD, R., Searching for Identity – The Trial of the Portuguese Converso Vicente Furtado: 1605 1615. PEAMIM 46-47, spring 1991, pp. 235-259 (Hebrew).
FAINGOLD, R., Conversos portugueses nos “Livros de Denunciações do Santo Ofício – Século 16”. RUMOS DA HISTÓRIA, vol. 2, n.3, agosto – dezembro 2016, pp. 92-111.
FAINGOLD, R., Safed – Refúgio de conversos no século 16. MORASHA, setembro 2020, pp. 32-39.
KAPLAN, Y. (ed.), The Travels of Portuguese Jews from Amsterdam to the Lands of Idolatry (1644-1724). Jews and Conversos. Studies in Society and Inquisition. Jerusalem: Magnes Press; 1985. pp. 197 – 224.
VAINFAS, R., Jerusalém colonial: judeus portugueses no Brasil holandês. Ed. Civilização Brasileira, 2010, 376 págs.