Shelomo Venezia (1923-2012) – Um “sonderkommando” em Auschwitz.

Shelomo Venezia nasceu em Salônica em 29/12/1923. Seus ancestrais judeus chegaram à Grécia via Itália; nomeando-se Venezia. Salônica tinha, na época, 70.000 judeus gregos e 300 judeus italianos. A família falava o ladino e eram pobres. Viviam na periferia do Barão Hirsch, o bairro tradicional de judeus.

Na cidade reinava uma convivência cordial entre judeus e não judeus. Apenas na Páscoa as tensões aumentavam, cinemas exibiam filmes acusando judeus de sacrificar crianças cristãs para fazer pães azemos. As notícias da Alemanha estavam bastante longe da realidade dos judeus. Em 1938 leis racistas foram adotadas excluindo judeus da sociedade. Assim, os alemães não encontraram dificuldades em deportar judeus da Grécia.

Nas vésperas de 1939, Itália e Grécia estavam em guerra. Salônica foi invadida pelos alemães gerando falta de mantimentos criando um mercado negro de compra e venda de cigarros, medicamentos, batatas e farinha para pão. O eclodir da 2ª Guerra Mundial era mera questão de tempo.

Entre 1939 e 1942 Salônica possuía seis bairros judaicos todos pobres, o de Barão Hirsch era 90% de judeus, foi fechado no final de 1942 e transformado em gueto. Obrigados a utilizar uma estrela de Davi amarela, as primeiras deportações começariam três meses depois. O gueto tinha suas portas vigiadas. Em pouco tempo, o bairro abrigou judeus de outros lugares; virou um ponto de encontro, uma estação de trânsito para os alemães efetuarem as deportações.

Shelomo morava fora do gueto e ajudava seus amigos comprando comida com dinheiro que recebia. Seus tios e primos foram selecionados, não conseguiu vê-los antes da deportação. Sua avó materna, italiana de 63 anos, foi enviada à morte nos campos. As deportações eram feitas longe dos olhares dos gregos. Em dez dias 10.000 judeus do “Barão Hirsch” foram deportados até Auschwitz-Birkenau.

Shelomo junto com outros judeus foram para Atenas ficaram dentro de uma escola. O consulado italiano ajudou por pouco tempo. Em 8/09/1943 Itália quebrou sua aliança com Alemanha, os alemães tomam Atenas e judeus são deportados. A família Venezia foi ocultada por uma família de andartis (gregos resistentes aos alemães) e logo denunciada.

Em 1944 membros da comunidade judaica foram obrigados a assinar um livro de registro na sinagoga. Caminhões com 150 judeus iam da sinagoga rumo à prisão de Haïdari, lá os soldados alemães saqueavam seus objetos de valor.

Em 1/04/1944 Shelomo foi deportado no primeiro comboio que saiu de Atenas, chegando a Auschwitz-Birkenau em seis dias. Ao subir no vagão foi empurrado pelos soldados, Shelomo abraçava sua mãe enquanto seu irmão Maurice segurava as três irmãs. Naquele dia, seus primos Dario e Jaco Gabbai também embarcaram.

A “Judenrampe”: Seleção

No destino as portas do trem se abriam e os soldados gritavam: Alle runter!, Alle runter! (Todos descendo, todos descendo). Armados e com cães latindo recebiam os prisioneiros. Cansados da viagem e desconcertados a maioria não entendia o que acontecia naquela plataforma.

Shelomo foi dos primeiros a sair, aguardando sua mãe, recebeu fortes golpes na cabeça por um soldado. Assustado, correu até a fileira onde estavam os demais. Ao descer ordenavam formar duas fileiras. Na fila dos homens sobraram 320. Shelomo permaneceu com seus primos e irmão Maurice e foram enviados a Auschwitz. Os outros foram levados de imediato às câmaras de gás em Birkenau.

Da rampa da seleção até Auschwitz caminharam três quilômetros, passaram pelo portão escrito “Arbeit Macht Frei” e avistaram o bloco 24 onde funcionava um bordel para divertimento dos soldados. Shelomo percebeu que o pior estava por vir. Um prisioneiro intérprete grego, Salvatore Cunio, informou que outro oficial da SS chegaria para interrogar os novos prisioneiros e era importante responder que se sentiam bem e com vontade de trabalhar. À noite a ordem foi todos a Birkenau.

O nevoeiro impedia a visibilidade, mas as barracas pareciam iluminadas. Logo se depararam com a Zentralsauna, sala para registro e dedetização dos prisioneiros. Depois numa segunda seleção, os mais frágeis eram levados para “receber cuidados especiais”. Ninguém sabia o significado daquelas palavras. Obviamente, foram condenados à morte e nunca voltaram ao grupo.

Entravam na sala do barbeiro, barbeavam sem creme, sangrava e causava extrema dor, em seguida uma ducha. Um alemão regulava as torneiras de água quente e fria, obrigando-os a ficar embaixo da água, divertindo-se. Finalmente, chegavam à sala das tatuagens o número de Shelomo era 182727.

Shelomo escutou um prisioneiro falando ladino, perguntando se sabia algo sobre as mulheres chegadas de Salônica. O prisioneiro apontou para as chaminés dos crematórios. Shelomo entendeu o destino dos deportados frágeis e incapacitados de trabalhar. Sem derramar uma lágrima soube que não contava mais com sua mãe e irmãs.

Birkenau – O encontro com os “kapos”      

O Blockältester, responsável pela ordem interna das barracas, era um polonês violento. Ele ordenou a divisão das liteiras; Shelomo, seu irmão, seus dois primos e um amigo estavam na mesma cama. Uma sopa com um pedaço de pão seria a primeira refeição desde que desceram em Auschwitz. A comida era trocada por fichas que deviam estar bem guardadas. Shelomo conta que “engoliu tudo de uma vez, sem sequer mastigar; tamanha a fome que tinha”. O importante era alimentar-se para sobreviver.

Os prisioneiros trabalhavam pouco e estavam proibidos de falar com os homens da sonderkommando. Duas vezes por dia havia chamada fora das barracas obrigando-se a manter-se de pé durante horas. Os últimos a chegarem à chamada eram castigados com golpes.

 Shelomo relembra nas Memórias a seguinte história: um dos kapos exigiu dele a devolução imediata de 5 moedas de ouro que havia escondido no campo, iria morrer caso não as entregasse. Comunicou que havia encontrado somente três das cinco deixando-o mais enfurecido. O furioso kapo queria as cinco moedas outorgando-lhe 24 horas para achar as outras duas. Ele não teve opção entregando-lhe as cinco moedas.

Com as cinco moedas o kapo comprou salsichas e vodka, organizou uma festa à noite. Estava totalmente bêbado, queria se divertir, escolheu aleatoriamente um jovem e magro prisioneiro e solicitou que abrisse a porta de seu quarto, mas na hora que o jovem segurou a maçaneta, recebeu uma forte descarga elétrica derrubando-o no ato. Continuou a brincadeira com outro homem, este não recebeu a descarga que seu colega tomara minutos antes. O kapo, ao ver que não tomava choque pediu que voltasse a segurar na maçaneta. Os tamancos de madeira do prisioneiro evitaram a corrente elétrica. O kapo logo percebeu que o calçado salvara o prisioneiro. Enfurecido, exigiu que o mesmo ficasse descalço e a descarga acabou matando o coitado.

O alvoroço era grande, chegou um oficial da SS, cobrou explicações do kapo. Este convidou o oficial alemão a segurar a maçaneta, o SS recebeu uma forte descarga, mas não morreu. O soldado começou a bater naquele kapo até deixa-lo desacordado. Nunca mais este kapo foi visto em Auschwitz.

O “Malahamoves” – SS Otto Moll

O trabalho nas fossas onde se depositavam corpos era penoso. Certo dia, após mais de duas horas de trabalho chegou uma motocicleta. Os homens da Sonderkommando começaram a tremer de medo. Estava chegando o brutal Malahamoves (Malach Hamavet), o Anjo da morte; também conhecido pelos presos como o impiedoso SS Otto Moll.

Em pouco tempo, qualquer prisioneiro conheceria a brutalidade e o sadismo deste SS. Ele veio berrando arbeit schweiner juden (trabalhem porcos judeus) e naturalmente “seus alaridos faziam todos acelerarem o ritmo do trabalho”. Quando percebia que queriam poupar forças, começava a gritar “Nein! Nur eine person für einen toten!”, ou seja: “Não, cada pessoa um morto”. Levar um cadáver entre dois era possível, mas uma pessoa só era uma tarefa exaustiva.

Certa vez, um prisioneiro de 25 anos carregava um cadáver, mas de repente ficou imobilizado. Moll se deu conta e começou a berrar: “Você, maldito judeu, cachorro, por que não trabalha! Vamos, mexa-se!” Logo depois começou a açoitar o coitado e este sequer se protegia dos golpes. O prisioneiro havia perdido por completo a razão, seu espírito não mais estava neste mundo. Já não sentia dor nem medo. O oficial alemão, diante da falta de reação ficou irado, sacou seu revólver e atirou. O prisioneiro não caía. Furioso, deu um segundo tiro nele e nada do prisioneiro cair. Parece que nada o derrubava: balas, barulho e medo não o atingiam. Finalmente, Moll trocou sua pistola por uma de maior calibre e conseguiu derrubar o jovem. Shelomo passava na frente de Moll quando o prisioneiro foi assassinado. O oficial o chamou e lhe ordenou que levasse o corpo até a fossa, mas antes deveria tirar suas roupas, pois elas não seriam queimadas já que seriam reutilizadas. O corpo esquelético foi atirado à fossa enquanto todos presenciavam a agitação do braseiro. Shelomo não dormiu várias noites e as cenas terríveis o acompanhavam obsessivamente.

Havia judeus gregos trabalhando nas vias férreas, perto do crematório. Como todos sabiam ladino, os prisioneiros inventaram uma música na qual pediam aos sonderkommando comida e roupas. Shelomo e seus colegas jogaram um pacote com pão embrulhado nas roupas. Na segunda vez em que a encomenda foi lançada por cima dos arames, Malahamoves a interceptou e ficou no crematório exigindo saber quem havia jogado o pacote. Diante do silencio dos prisioneiros, prometeu voltar no dia seguinte para obter uma resposta. Voltando, ordenou uma formação de prisioneiros, faltavam dois: um conhecido como “o intelectual” e Shelomo. Eles não escutaram a chamada dos kapos para a formação. Venezia chegou tarde à formação, cuspiu seu cigarro, mas esqueceu de tirar seu gorro da cabeça. Malahamoves estava furioso. Aproximou-se de Shelomo e o derrubou, ao levantar-se foi derrubado pela segunda vez, retornando à formação. Para que ninguém sofresse um castigo coletivo, um prisioneiro confessou ser o homem que entregou o pacote aos trabalhadores de Rodos. Recebeu 25 açoites com látego.

“”O intelectual”  se apresentou diante do kapo para prestar explicações. Estava pálido, magro e doente, antes de ficar diante de Malahamoves, colocou um cobertor debaixo de seu corpo para parecer menos magro. O SS, furioso pela demora na formação, solicitou que “o intelectual” seja açoitado. Para isso, designou um russo, fazendo uma demonstração da intensidade com que deveria bater no prisioneiro. Inicialmente, ainda protegido pelo cobertor, o intelectual não sofreu. Percebendo isto Malahamoves, lhe ordenou abaixar suas calças e com tantos golpes, o SS Otto matou o prisioneiro.

O caminho câmara de gás – crematório

Nas câmaras de gás as pessoas eram obrigadas a despir-se. Os primeiros entravam, os últimos ficavam a 100 metros da porta de entrada. Eram enviadas as mulheres, crianças e idosos, depois homens doentes. Com o intuito de enganar, os alemães colocaram na “sala de despir-se” números; para acreditarem que pegariam os pertences logo após o banho prometido. Um SS ou um homem da sonderkommando passava as instruções àqueles que iriam adentrar. Para acelerar o ingresso, prometiam aos deportados uma refeição após a “dedetização” nos chuveiros. Já nuas, mulheres com seus filhos nos braços se apressavam para terminar com tudo o antes possível. Algumas vezes, ao demorar a saída de água, uma mulher se aproximava à porta dos chuveiros; sendo recebida com violentos golpes.

O processo de cremação não acabava nunca, e os sonderkommando trabalhavam em turnos de 12 horas. Shelomo lembra que uma única vez o trabalho dos crematórios foi interrompido por dois dias devido ao aquecimento dos tijolos e consequentemente o entupimento das chaminés. “Nos dois dias em que não se trabalhava os corpos dos prisioneiros entravam em decomposição e o cheiro era insuportável” lembra Shelomo com lágrimas nos olhos.

Os prisioneiros mais debilitados eram apenas “pele e osso”. Não estavam vivos nem mortos chamados muçulmanos. Shelomo explica que essa denominação provém da posição adotada pelos árabes ao rezar, no caso dos prisioneiros dos campos tratava-se daqueles que tentavam ficar em pé sem sucesso, caindo no chão sem forças com sua cabeça para frente e pés ajoelhados.

Composição da Sonderkommando.

Os trabalhadores da sonderkommando dormiam em camas individuais. Todos na Sonderkommando eram judeus, porém havia alguns prisioneiros soviéticos. No campo de Auschwitz havia prisioneiros russos nos crematórios e trabalhavam pouco. Eram bem tratados pelos kapos, comiam salsichas, bebiam vodka e fumavam cigarros. Shelomo lembra os nomes de três deles: Micha, Iván e Sacha. Sua tarefa era procurar objetos de valor ocultos nas roupas dos prisioneiros mortos.

Nem todos os judeus desejavam fazer parte da sonderkommando. Dentre seus membros havia aqueles que rezavam diariamente suas orações. Era mais fácil e menos perigoso rezar neste ambiente que rezar nas barracas comuns dos prisioneiros.

Shelomo Venezia desconhece a imagem que os prisioneiros tinham dos sonderkommando; acredita que alguns invejavam os privilégios obtidos. Os detentos espalhavam que a sonderkommando era responsável pelas mortes nos crematórios, não é verdade somente os nazistas matavam. A sonderkommando não tinha escolha, era obrigada a realizar as tarefas de remoção e queima de corpos, os colaboracionistas eram voluntários.

O ser humano se acostuma a tudo. No Início o cheiro dos corpos impedia comer um pedaço de pão, com o passar do tempo volta a comer para sobreviver e trabalha de forma mecânica. Nos primeiros 10 dias, qualquer ser humano fica chocado e gradativamente deixa de pensar. Maurice, irmão de Shelomo, nunca quis fazer depoimentos, segundo ele “tudo não passou de um pesadelo, algo que jamais aconteceu…”. Shelomo pensa um pouco diferente: “Justamente, por tratar-se de algo tão inimaginável, todos aqueles que podem contar suas experiências devem fazé-lo. Nós, da sonderkommando, talvez tivéssemos melhores condições de sobreviver; tínhamos menos frio e mais comida; porém vimos o pior todos os dias, estávamos no meio do inferno”.

A possibilidade dos sonderkommando fugirem à floresta era remota, não falavam polonês, corriam o risco de serem denunciados aos nazistas pelos camponeses. Shelomo admite que poucos membros da sonderkommando  mantinham  esperanças de sair com vida, jamais imaginou sair daquele inferno. Apenas um milagre permitiria sobreviver às atrocidades, todos sabiam que o final estava próximo.

A revolta nos crematórios                                  

Os homens da sonderkommando tinham contatos com prisioneiros do campo e com a ala das mulheres. Subornavam guardas alemães para ir à ala feminina e organizar a revolta em Auschwitz. A ideia de uma revolta nos crematórios surgiu antes de Shelomo chegar ao campo. Um homem de nome Kaminski era Oberkapo (chefe de kapos) e o cérebro dessa revolta. Para executar o plano era necessário manter contatos com a resistência e com os trabalhadores do campo das mulheres. Lá havia prisioneiras judias trabalhando numa fábrica de pólvora. As articulações foram realizadas discretamente.

A revolta seria iniciada pelos sonderkommando do Crematório II na hora em que os SS trocavam a guarda nas torres de controle. O plano previa que ao trocarem as guardas, eles abririam a porteira e pulariam nos alemães para matá-los e tomar suas armas. Este momento seria o sinal para que os demais crematórios se revoltassem. Na sonderkommando, reinava o otimismo e todos estavam cientes que esperar a morte não era conveniente e valia a pena arriscar-se.

Os alemães com medo do avanço dos aliados, desmantelaram os campos, câmeras de gás, crematórios, torres de controle e barracas. Os homens da sonderkommando eram encarregados pelo trabalho, Shelomo se feriu com um prego enferrujado durante o desmanche. Teve que ser operado sem anestesia por um médico do campo. Como não tinha esparadrapos e álcool, a ferida foi desinfetada com água de colônia e isolada com papel higiênico. Em poucos dias o trabalho diminuiu e ele se recuperou.

Ao evacuar o lager os prisioneiros morriam O cansaço era enorme e os sonderkommando ajudavam outros prisioneiros, fragilizados pela falta de comida. Shelomo lembra que no vagão de fuga um iugoslavo esquelético morreu a seu lado e o cadáver ainda permaneceu em pé durante a viagem.

Mauthausen, Melk e Ebensee

O trem chegou ao campo de Mauthausen na Áustria. Perguntaram a Shelomo e colegas se já haviam trabalhado na “sauna”. Todos consentiram pois era uma tarefa que facilitaria a sobrevivência. A sauna era para desinfecção de prisioneiros que precisavam despir-se por completo, raspar a cabeça e o corpo. Cada judeu recebeu um número, em Mauthausen o prisioneiro recebia um bracelete de metal com seu número gravado. O número de Shelomo era 118554. Após ducha fria, nus e molhados, se enfileiravam na neve, a dor pelo frio era terrível.  No barracão não havia camas, mas todos receberam roupas. A única vantagem em relação à Auschwitz era que as janelas não estavam quebradas permitindo proteger-se do frio. Na manhã seguinte fizeram uma chamada alfabética, os SS levaram 300 pessoas. Repartiram sopa e obrigaram todos a subir aos vagões viajando seis horas rumo a um novo campo em Melk. Ali os barracões eram largos e as liteiras insuficientes ninguém aceitava compartir a sua com outro prisioneiro.

O trabalho em Melk estava organizado em três turnos rotativos de 8 horas. Neste campo não havia solidariedade, havia que dar um jeito para garantir condições mínimas. Dormia-se com roupa para não ser roubado à noite. O trabalho consistia em construir galerias subterrâneas na montanha, obra começada por austríacos. Shelomo conseguiu ingressar num grupo de 50 pessoas conhecidas. Os responsáveis pela obra eram austríacos, SS e kapos. A tarefa de construir galerias permitia estar num lugar quente, longe dos alemães. Eram trabalhos forçados e não havia quase comida nem descanso.

Shelomo foi libertado em 06/05/1945. Na época os kapos se tornaram menos violentos e a entrada dos soldados americanos era cada vez mais esperada. Preocupados, os alemães começavam a fugir desesperadamente. Na procura de justiça ou vingança, kapos foram assassinados pelos prisioneiros. O acampamento militar montado pelos americanos era sujo e havia sido dedetizado para evitar epidemias. Eles colocaram os prisioneiros em duchas pulverizando-os com deteticida. Shelomo foi avaliado medicamente e o diagnosticaram com TBC. Ele não conhecia estas siglas e o médico explicou: “O Sr. tem tuberculose, uma doença nos pulmões”.

Dois meses depois de ser diagnosticado, Shelomo começou a pensar em viajar à Palestina. Com fortes dores, foi atendido em um hospital de Udine na Itália. Estava angustiado por não poder viajar à Palestina com seus parceiros. Passou por vários hospitais: em Udine, Forlanini e Merano. No hospital de Merano ficou alguns anos, e o Joint zelava pelos cuidados médicos dando-lhe assistência profissional.

Formando família e testemunhando

Com 32 anos Shelomo casou com Marica e tiveram três filhos. Um irmão e uma irmã dele também sobreviveram a Shoá. Dos Venezia sobreviveram três pessoas, um milagre, pois na maioria dos casos todos eram massacrados. Da família da mãe de sobrenome Angel, ninguém sobreviveu.

Shelomo começou a falar da guerra, mas ninguém queria escutar muito menos acreditar nos relatos. Seus amigos o consideravam louco, completamente afetado pela guerra. Em 1992, voltou a falar do tema. Era época de forte antissemitismo na Itália. Voltou a Auschwitz a convite de uma escola, seu amigo Luigi o acompanhou. Ficou paralisado contemplando as ruinas dos crematórios.

Shelomo acredita existir uma diferença enorme entre os sobreviventes da sonderkommando e os comuns de Auschwitz. Explicar esta diferença machuca, pois a maioria passou fome e frio; mas não esteve em contato direto com cadáveres, com corpos. O contato com a morte acompanhou os homens da sonderkommando. Eles viam pessoas entrarem em câmaras de gás sem a menor esperança. Segundo Shelomo “a experiência na sonderkommando era bem mais pesada, pois teve também a oportunidade de vivenciar em Melk e Ebensee a experiência comum dos outros sobreviventes”.

Em relação a refazer sua vida após a 2ª guerra, confessa: “Nunca mais tive uma vida normal. Nunca pude dizer que tudo ia bem, e, como outros seres humanos dançar e divertir-me de forma despreocupada. Tudo me transporta ao campo (Auschwitz). Faça o que faça, veja o que veja; meu espírito sempre torna ao mesmo lugar. É como se o trabalho que realizei ali jamais saísse da minha cabeça. A rigor, você nunca conseguirá sair do crematório”.

Shelomo Venezia faleceu em Roma em 02 de outubro de 2012. O prefeito de Roma prometeu construir um Museu do Holocausto em sua homenagem. Sem dúvida esta será uma justa homenagem a um dos sobreviventes que mais colaborou para perpetuar a memoria do Holocausto.

Bibliografia

Venezia, Shelomo, Sonderkommando. Albin Michel, Paris 2007. Tradução espanhola: Shelomo Venezia, Sonderkommando. Coordinado por Tomás Lambré e traduzido por Manuel Serrat Crespo. Prólogo de Simone Weil. 1ª edición, RBA Libros, Buenos Aires 2010, 224 págs.