Shoá: Um debate polêmico

Linhas de pensamento tentam compreender a forma em que se executou a Shoá, o assassinato sistemático de seis milhões de judeus. Uns são intencionalistas e acreditam que este genocídio estava presente no primeiro programa político de Hitler entre 1919-1920; outros são funcionalistas e vem o Holocausto como um extermínio executado sobre a marcha, em médio a lutas de poder. O debate está longe de se esgotar.

Intencionalistas

Para um considerável grupo de historiadores, as perguntas sobre o extermínio dos seis milhões de judeus na Europa, encontram resposta na retórica antissemita do Führer Adolf Hitler que, em diferentes períodos de sua vida (artista frustrado, militar incapaz e político emergente), enxerga os judeus como um objetivo em si mesmo e uma obsessão constante. Assim, Hitler aparece como o verdadeiro incentivador da política antissemita nazista, manifestando em opiniões uma linha de pensamento coerente, sintetizada na famosa frase “Die Juden sind unser Ungluck” (Os judeus são nossa infelicidade).

A historiadora norteamericana Lucy Dawidowicz em sua obra “The War Against the Jews” sustenta que Hitler deve ser analisado como o único estrategista com suficiente autoridade, poder e determinação para levar a cabo a “Solução Final dos Judeus”. Para ela, a aniquilação dos judeus e a guerra eram assuntos interdependentes. Em outras palavras, Hitler preparava o caminho para o extermínio em massa em setembro de 1939 quando os alemães invadem a Polônia. As desordens da própria guerra proporcionaram ao Führer a cobertura necessária para cometer esses assassinatos desenfreados.

Para Dawidowicz a invasão à Polônia possibilitou uma “guerra dupla”: por um lado uma guerra de conquista buscando o controle absoluto de matérias primas e a criação de um império alemão forte; e por outro uma guerra total contra os judeus, um confronto decisivo contra o maior inimigo do Terceiro Reich. Em outras palavras, a Polônia viraria um “laboratório experimental” da política preconceituosa e intolerante dos nazistas.

Ainda na linha da historiadora Dawidowicz, a ordem de extermínio em massa, lançada durante o verão de 1941 com a “Operação Barbarrosa”, deriva diretamente das ideias de Hitler acerca dos judeus, expressas já em seu programa político de 1919. Para ela, o líder alemão pode minimizar ou camuflar a importância de seu programa de aniquilação, porém suas intenções não variariam jamais. Resumindo, Hitler havia formulado planos de longo prazo para realizar seus objetivos ideológicos, e a destruição dos judeus era seu núcleo fundamental.

A proposta de Lucy Dawidowicz pode ser qualificada de “intencionalista”, uma vez que coloca toda sua ênfase no rol central exercido pelo Führer na execução do assassinato em massa dos judeus da Europa, detectando um alto grau de obstinação, de coerência e de lógica no desenvolvimento da política antissemita dos nazistas, da qual o principal objetivo era o extermínio em massa.

A teoria intencionalista de Dawidowicz foi retomada por dois historiadores, Gehrard A. Ritter e Friedrich Melnecke. Estes estudiosos acham fundamental o protagonismo de Adolf Hitler na constituição da ideologia e da propaganda nazista, ambas indispensáveis e cruciais para encaminhar o extermínio da teoria à prática.

Funcionalistas

Os historiadores denominados “funcionalistas” acham que o Holocausto foi iniciado somente em 20 de janeiro de 1942, na “Conferência de Wannsee”, como resultado do fracasso da política nazista de deportação e das iminentes perdas militares na URSS. Eles entendem que as fantasias de extermínio delineadas superficialmente pelo Führer em “Mein Kampf” e nos discursos proferidos no Reichstag não passam de mera propaganda.

O historiador austríaco Raul Hilberg é o patrono da historiografia da Shoá e faz parte da escola “funcionalista”. Pioneiro na pesquisa, em 1961 escreveu uma obra monumental de 1.500 páginas intitulada “The Destruction of the European Jews” na qual defende a ideia de que o extermínio dos judeus não estaria ligado apenas ao Führer, sendo obra de todo um aparelho de Estado sustentado em esferas sociais e burocráticas. É justamente através da burocracia que Hilberg procura explicar o processo genocida, em detrimento de outros fatores como o culto cego ao Führer e a sofisticada propaganda. A estrutura burocratizada dos nazistas é indiscutivelmente mais importante que Hitler, Göring, Himmler, Goebbels, Heydrich, Eichmann ou qualquer figura individual legitimada pelas políticas nazistas.

Ao ser Hilberg um dos primeiros historiadores a registrar suas impressões sobre a Shoá, o testemunho como fonte para estudo do genocídio se encontra ausente; ainda devido à grande proximidade temporal que os sobreviventes possuíam com a permanência no Lager, lembrando que o trauma gerado pelo universo do campo de concentração ou extermínio era ainda muito forte para permitir que o testemunho fosse expresso.

Para Hilberg a inexistência de testemunhos dos sobreviventes se constitui em material secundário no estudo do Holocausto, serve apenas para efeito de verificação, não sendo um provedor de sentido para a argumentação. Neste sentido, o livro de Raul Hilberg se constitui num livro sobre os perpetradores, as pessoas que exterminaram os judeus.

Na visão de Hilberg o alto comando militar nazista se sentia gratificado e satisfeito, mais devido ao sofisticado aparelho burocrático e sua poderosa máquina genocida, que pelas próprias atrocidades cometidas contra judeus europeus. Para Hilberg “os perpetradores sentiam forte fascinação pelos atos maquinais e não pela combinação desses atos com mitos ideológicos, estéticos e pressupostos éticos mundanos”.

A tese de Raul Hilberg veio dar suporte a construção da famosa tese da filósofa Hannah Arendt acerca da “Banalidade do Mal”, após observar o Julgamento do burocrata nazista Adolf Eichmann (1906-1962) em Jerusalém.

A obra “The Destruction of the European Jews” não é um trabalho focado nos judeus, senão um livro sobre os perpetradores. Em decorrência disso, não houve resistência da parte dos judeus durante o extermínio; no levante do gueto de Varsóvia, na fuga de Sobibor ou na rebelião de sonderkommando em Treblinka, uma vez que eles constituem casos pontuais de resistência.

Aproximando-se aos historiadores sionistas, os judeus morreram como ovelhas indo para o matadouro. Para Hilberg existe uma única forma de resistência, a resistência através do combate, e não como para os professores Israel Gutman ou Martin Gilbert, argumentando que a passividade e a dignidade na hora da morte eram também formas de resistência. Hilberg entende que atos de passividade diminuem moralmente os atos de resistência, aqueles em que houve confronto entre vítimas e perpetradores.

Para os “funcionalistas” o processo de extermínio dos judeus na Europa durante a Segunda Guerra, mais especificamente entre 1942-1945, período em que foi colocado em prática o “Endlösung der Judenfrage” (Tratamento Especial da Questão Judaica) um eufemismo para apontar a “Solução Final”, se constitui em um fenômeno quase sem precedentes na História. A violência exercida contra os judeus durante o Terceiro Reich foi sendo aumentada ao longo do tempo, começando com boicote aos estabelecimentos judaicos na Alemanha em abril de 1933, até culminar no extermínio físico, colocado em prática de forma sistemática após a “Conferência de Wannsee” em janeiro de 1942.

O fenômeno da radicalização progressiva presente no indivíduo durante o Nazismo pode ser bem entendido no estudo de caso realizado pelo historiador americano Christopher Browning na obra “Ordinary Men: Police Reserve Battallion 101 and the Final Solution”. Lá Browning faz o estudo de apenas um batalhão de policiais de reserva alemão para traçar o que ele denomina “perfil dos homens comuns” que durante o Terceiro Reich estiveram empregados no processo de extermínio. O livro descreve a trajetória de comandantes do batalhão que chegaram até se acostumar com os assassinatos em massa, tornando aquilo parte de sua rotina.

A corrente funcionalista se desenvolveu em torno de renomados historiadores alemães. Os trabalhos de Martim Broszat, Hans Mommsen e de muitos outros intelectuais põem em questão a ideia de que a evolução do Terceiro Reich fora resultado da aplicação de um plano pré-estabelecido, enunciado em “Mein Kampf” e, minuciosamente preparado durante o período de luta do Nacional-socialismo pelo poder em 1933. Rechaçam o fato de que tal programa pudesse se impor sem repreender a todos os componentes da sociedade alemã, e mais ainda, ao resto da sociedade internacional.

Os funcionalistas alemães retomam e ampliam a tese sugerida em 1942, pelo sociólogo Franz Neumann. Para eles, longe de formar um bloco homogêneo e único, o regime nazista estava submetido a forças centrífugas apartadas de sua interação, a saber: o aparato do partido propriamente dito, suas múltiplas entidades e organizações satélites (profissionais, culturais, juvenis), o exército, as forças econômicas nas que se juntam os sistemas totalitários que escapam ao controle tanto do partido como do Estado.

Uma ideia curiosa emerge dos textos dos intencionalistas alemães: Distante de ser um sistema rígido e fechado, o Estado hitlerista foi um sistema relativamente aberto, às vezes anárquico, em evolução permanente, existindo fortes rivalidades entre as diversas figuras próximas do poder, algo que Broszat denomina “policracia nazista”. Neste quadro político Hitler está longe de ser o ditador todo-poderoso que garantia o sistema.  Sua vontade pessoal era talvez um fator menos determinante que o “mito do Führer” elaborado por uma propaganda eficaz e onipresente.

Dois escritores alemães, o historiador Sönke Neitzel e o psicólogo Harald Welzer, explicam na obra “Soldados: Sobre lutar, matar e morrer”, que o assassinato tornou-se parte do marco referencial do Nazismo. Para eles, os soldados do Wehrmacht fizeram do assassinato em massa de judeus uma parte de sua própria rotina, transformando tal prática num ato corriqueiro. Soldados esses que, em muitos casos, nunca mataram um único inimigo, ou sequer ainda tinham ido para o campo de batalha.

 “Sonderweg” – Uma terceira via?

A brutalidade dos indivíduos, principalmente soldados, que poderia ser impensada para algumas pessoas, ganha força a partir de 1980 com trabalhos de historiadores que criam uma corrente de pensamento polemica e controversa. É a ideia de “Sonderweg”, o “caminho especial” que trilhou a Alemanha séculos atrás e que culminou com a Shoá.

A teoria do “Sonderweg” baseia-se numa inversão de valores democráticos que foi vivenciada pela Alemanha, desde os séculos 18 e 19, numa experiência premeditada que consistia em minar e menosprezar os valores da democracia liberal vivenciada em países como os Estados Unidos, França ou Inglaterra. Nesse sentido, o “Sonderweg” é uma teoria comparativa que visa equiparar a Alemanha com outras nações do ocidente, todas alinhadas com o modelo de governo democrata e liberal. Esta teoria tem como seu maior representante o historiador alemão Jürgen Kocka.

O debate acerca do “Sonderweg” ganha ainda força com a publicação em 1996 do livro “Os Carrascos Voluntários de Hitler” do historiador americano Daniel Goldhagen. Alvo de numerosas críticas, Goldhagen se opõe a Browning e enxerga o antissemitismo alemão como sendo herança da Idade Média passando pela Reforma Protestante de Lutero. Ele afirma com convicção que a perseguição aos judeus no período medieval já era um sinal deste “caminho especial” que conduziria fatalmente ao Holocausto.

Além de descartar a Historikerstreit, (o debate entre intencionalistas e funcionalistas), Daniel Goldhagen aponta a Shoá como sendo uma espécie de fim predeterminado de séculos de antissemitismo na sociedade alemã.  Para ele a construção desse caminho único para Auschwitz parte do medievo. O extermínio dos judeus durante a Segunda Guerra é um super-pogrom, e a “Solução Final” estava anunciada desde, pelo menos, 100 anos antes de acontecer. A sociedade alemã dos 30 e 40 estava impregnada de um “antissemitismo exterminacionista”, e o povo não só sabia perfeitamente o que ocorria no país durante a guerra, como fora ainda peça fundamental para o extermínio.

Caso endossemos a teoria de Goldhagen, a “Solução Final” não só estava desenhada há um século; como seria admitir abertamente que o povo judeu foi demasiado ingênuo para não perceber o seu destino. Aos judeus fica difícil aceitar tal teoria e na verdade Goldhagen está totalmente equivocado.

Mas há outra afirmação pouco consistente na tese de Goldhagen. Ele está equivocado quando afirma que todos os alemães concordavam com o extermínio físico dos judeus, e também ao tratar de forma restrita o conceito de “ordinary men” (homens comuns) de Christopher Browning, aplicando-o somente para o povo alemão, sendo assim alemães comuns. Neste caso não seria também justo falar em poloneses comuns, ucranianos comuns, lituanos comuns, e demais grupos colaboracionistas?

Palavras finais

Mas, afinal, o debate entre intencionalistas e funcionalistas nos permite compreender melhor a Shoá? Que importância tem saber se Adolf Hitler já pensava em matar os judeus em seu primeiro programa de governo ou se o genocídio judaico foi possível através do funcionamento de uma eficaz engrenagem pensada pelo Estado como um todo?

Identificar-se com o intencionalismo ou com o funcionalismo é, sem dúvida, uma forma de entender melhor as diferentes etapas do Holocausto, no entanto a problemática em si mesma da Shoá é algo que talvez nunca consigamos resolver.

O debate entre as duas correntes historiográficas que apresentamos neste artigo não atingiu apenas historiadores, mas também filósofos pós Holocausto. O filósofo italiano Giorgio Agamben, o autor de “O que resta de Auschwitz” (1998) afirmou que jamais poderemos compreender o universo dos campos, por que não estivemos no interior destes, e que o individuo que conheceu todo aquele universo, já não está mais presente: ele morreu na câmara de gás.  Seu texto, valorizando as testemunhas, procura entender as dimensões da produção escrita dos sobreviventes do Holocausto nazista.

Em contrapartida, depois de ter estudado em profundidade este tema, posso afirmar que não podemos deixar de buscar compreender este processo. Os testemunhos e diários que estão disponíveis hoje, mesmo que muitas vezes tenham sido escritos por indivíduos que não morreram nas câmaras de gás, nos permitem compreender com maior clareza a parte mais obscura de nós mesmos.

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