Terremotos na História Judaica

(Artigo publicado na TRIBUNA JUDAICA, 23 de março a 06 de abril 2006, pág. 14).

Dias atrás, sentado na poltrona do avião, lia uma crônica escrita pelo antropólogo e consultor de empresas Luiz Marins. O cronista comentava que, passado o terremoto de Lisboa em 1755, o rei de Portugal D. José perguntou ao general Pedro D´Almeida (Marques de Alorna), o que deveria ser feito após tamanha tragédia. Ele respondeu ao rei: “Sepultar os mortos, cuidar dos vivos e fechar os portos”.

A resposta me intrigou. A frase do marquês, aparentemente simples, é um convite à reflexão. Muitas vezes temos em nossas vidas pessoais terremotos avassaladores como o de Lisboa de meados do século 18. A catástrofe é tão grande que perdemos a capacidade de raciocinar para agir de maneira clara e objetiva.

Esses terremotos podem ser diversos: um amor não correspondido, desentendimento de tipo profissional, erros incorrigíveis com nosso melhor cliente, um destrato diante do paciente, uma doença inesperada, uma separação conjugal e até uma morte súbita. Todos nós estamos sujeitos a terremotos na vida. Quem está vivo sabe perfeitamente que há falhas geológicas sob os nossos pés e que podem gerar tremores a qualquer instante.

E os povos? Por acaso eles não possuem seus momentos sísmicos, seus próprios terremotos? O povo judeu é talvez o caso mais significativo. Atravessou tempestades ou terremotos, porém sempre ressurgiu fortalecido das cinzas. A prova está no passado ano 2005, quando lembramos os 60 anos do fim do Holocausto. O que devemos fazer? Exatamente o que mandou fazer o marquês de Alorna: “Sepultar os mortos, cuidar dos vivos e fechar os portos”. Mas, o que significa isto para nossas vidas. Vejamos:

1. Sepultar os mortos: Para o povo de Israel significa não ficar à mercê do passado. O passado serve apenas para justificar nosso presente e poder atingir um futuro mais promissor. A prece de quse todas as festividades judaicas e dias de recordação “Shehecheyanu, vê-kiymanu, vê-higuiyanu, la zeman há-zê” (Bendito sejas Tu, Senhor do Universo, que nos fizeste chegar a estes dias) é uma prova irrefutável que o passado existe como testemunha da existência presente, e para garantir a existência futura. Os três verbos hebraicos da prece (separados por vírgulas) aparecem em plural e em tempo passado, possuindo um valor intrínseco, pois priorizam os dias atuais, e certamente antecipam tempos vindouros. Para nós judeus é essencial sepultar os mortos e assim enterrar o passado. Colocar o passado debaixo da terra não significa esquecê-lo, mas constatar que o tempo não para e a memória precisa retomar seu processo cíclico de regeneração.

2. Cuidar dos vivos: Para o povo judeu significa cuidar do presente. A referência aos vivos abrange a todos nós, judeus do mundo inteiro responsáveis pelo presente de nossa nação, agora com seu Estado livre e soberano. Cuidar de quem está vivo é cuidar de quem sobrou do último terremoto, do genocídio perpetrado por Hitler e comparsas. Depois da libertação dos campos de concentração e extermínio pelos Aliados, os judeus espalhados mundo afora fizeram o que deve ser feito para salvar o que restou do terremoto. Era tempo de recomeçar, de reconstruir, tempo de cuidar dos vivos. Afinal, somente eles poderão garantir a dignidade do povo nas futuras gerações.

3. Fechar os portos: Ciente de que os portos são as portas de entradas aos países, o povo de Israel não pode deixar portas abertas para que novos problemas possam surgir. Fechar os portos é não deixar brechas que causem novos terremotos, e ao mesmo tempo ficar alerta para não sermos pegos de surpresa. Significa também manter o foco e cuidar dos vivos. Implica concentrar-se na reconstrução através do trabalho produtivo. Jamais esquecer que outros terremotos estão em plena ebulição e poderão voltar a nos destruir. Ficar sempre em alerta máxima.

É assim que a História Judaica nos ensina. Todos nós, judeus, estaremos sempre sujeitos a tremores sísmicos. Não é novidade.  E, caso eles acontecerem não esqueça: Enterre os mortos, cuide dos vivos e feche os portos. Para o povo judeu as lições do marquês de Alorna são atuais e valiosas. Diante da realidade em que vivemos: o conflito no Oriente Médio (EUA-Iraque e Israel-Palestina), o recrudescimento do antissemitismo na Europa e a intolerância com as minorias em geral, talvez o melhor dos ensinamentos seja mesmo “sepultar os mortos, cuidar dos vivos e fechar os portos”.