Tratados hebraicos de xadrez na idade média

(Artigo publicado na revista A HEBRAICA, Magazine XXXIV-XXXV, setembro 1994, págs. 66-67).

O “POEMA DE XADREZ” E AS REGRAS DO JOGO

O “Poema de xadrez” de Abraham Ibn Ezrah (1092-1167), escrito originariamente em latim, foi impresso pela primeira vez por Thomas Hyde em 1767. Este bibliófilo e orientalista britânico trabalhou com um manuscrito do século 15 achado na “Biblioteca Bodleana” de Oxford. Além deste manuscrito inglês, existiam outros três manuscritos do poema. Um deles, talvez o melhor conservado, tenha sido escrito em 1450, e se encontra guardado na British Library de Londres.

Alguns pesquisadores como Moritz Steinschneider e Egers, que analisaram de forma detalhada esta importante fonte, acreditam que o “Poema de xadrez” não poderia ser atribuído jamais ao rabino Abraham Ibn Ezrah. Porém, se Ibn Ezrah não escreveu o poema, o mesmo deveria ser obra de algum de seus contemporâneos.

A seguir, ofereço a vocês uma tradução livre do poema:

  1.  Canto uma canção sobre uma batalha preparada,
  2.  Antiga e imaginada em dias passados,
  3.  Arranjada por homens de prudência e inteligência,
  4.  Disposta em oito fileiras.
  5.  Em cada fileira da tábua, há marcadas oito divisões.
  6.  E, estas fileiras possuem quatro quadrados,
  7.  que em conjunto se unem,
  8.  E ali, os peões ficam bem próximos.
  9.  Os réis (malik) ficam em pé com seus peões.
  10.  Para a guerra deixam um espaço entre os dois,
  11.  Em frente a eles (se encontram) prestes a lutar,
  12.  Eles se movimentam firmes e perfeitos,
  13.  Já não há espadas indecisas no combate,
  14.  Sua guerra é apenas um trabalho mental.
  15.  Serão reconhecidos com um sinal e notáveis marcas,
  16.   Assinaladas e estampadas em suas pessoas.
  17.  Quem quer que seja os observa em movimento,
  18.   A Ele (o Rei) se alistam, como Edomitas e Etíopes,
  19.  Os Etíopes esticam suas mãos na batalha.
  20.  E os Edomitas recuam depois deles.
  21.  Primeiro, vem os peões (regel),
  22.  que marcha o peão desde o início,
  23.  Agora ele virá em diagonal,
  24.  para capturar o inimigo.
  25.  Ele (peão) não anda em diagonal,
  26.  nem seus passos se movimentam para trás.
  27.  E, se por acaso ele andou longe de sua posição,
  28.  e avançou até a oitava fileira,
  29.  Ele poderá virar para ambos os lados como as Rainhas.
  30.  E contar com Ela na batalha.
  31.  As Rainhas movimentam seus passos,
  32.  E fazem seus movimentos no tabuleiro,
  33.  Assim, se Ela quiser, desde o início poderá pular,
  34.  três quadrados em cada direção.
  35.  O elefante (pil), sempre presente na batalha,
  36.  fica observando de lado como um espião,
  37.  seu passo assemelha-se ao das Rainhas,
  38.  embora possua uma vantagem: pode dar um passo triplo.
  39.  As patas do cavalo (suss) são ligeiras na batalha.
  40.  Elas andam por uma senda encurvada,
  41.  sendo seus caminhos retorcidos e nada retos.
  42.  O limite de três casas ultrapassam,
  43.  A torre (ruq) anda sempre em linha reta,
  44.  E no tabuleiro com largura e cumprimento.
  45.  Ela nunca continuará por sendas sinuosas,
  46.  e jamais seu caminho será oblíquo ou encurvado.
  47.  O Rei andará em todas as direções possíveis,
  48.  a todo vento irá ajudando a seus dependentes,
  49.  se cuidando quando ameaçado ou em movimento.
  50.  E no próprio combate, Ele mesmo acampará,
  51.  E… quando o inimigo o hostilizará e o ameaçará,
  52.  Ele automaticamente sairá de seu lugar.
  53.  Ou se a torre lhe impõe medo,
  54.  segue Ele (o Rei) de um lugar para outro.
  55.  Pois, deverá Ele mudar para seus lados,
  56.  então, as hostes se recolhem na sua frente,
  57.  Quando de repente, um lado e outro morrem,
  58.  E a todos raspam com grande fúria..
  59.  Mas… os heróis de qualquer Rei,
  60.  Tem caído sem efusão de sangue.
  61.  As vezes os Etíopes são vitoriosos,
  62.  e os Edomitas fogem defronte deles.
  63.  As vezes são os Edomitas vitoriosos,
  64.  os Etíopes com seus Reis abandonam a batalha.
  65.  E se por ventura o Rei é tomado prisioneiro,
  66.  sendo apanhado nas redes implacavelmente,
  67.  sem possibilidade de regatá-lo,
  68.  e sem refúgio nem fuga para qualquer forte cidade,
  69.  Ele (Rei) será sentenciado e condenado pelo inimigo.
  70.  Ninguém o salvará, e receberá sua morte (mat),
  71.  E todas suas hostes morrerão pelo soberano,
  72.  oferecendo-lhe suas próprias vidas.
  73.  E sua glória se afastará, e eles serão aniquilados,
  74.  quando verem de que forma sua Majestade acabou.
  75.  Agora a batalha recomeçará,
  76.  e a morte de uns e outros, novamente acontecerá.

O “Poema de xadrez” descreve as regras deste jogo (algumas obsoletas); quando o manuscrito original foi compilado definitivamente no século 13. Na disputa participam peças de cores diferentes, simbolizando pelos Etíopes (negras) e os Edomitas (vermelhas). Os movimentos do jogo estavam baseados na técnica do xadrez muçulmano, onde a Rainha podia pular por cima das demais peças do tabuleiro.

Alguns trechos deste poema medieval não são suficientemente claros. É possível achar várias corruptelas de palavras. Deixando de lado as numerosas dificuldades sugeridas da leitura, fica evidente que o xadrez medieval (como também o praticado hoje), a Rainha era a peça guerreira mais valiosa do tabuleiro, ainda mais relevante que o próprio bispo.

UMA PROSA HEBRAICA SOBRE XADREZ

O bibliófilo Thomas Hyde, acima citado, publicou uma breve obra em prosa, escrita no século 15 em hebraico, intitulada “Melitzat Ha-Sejak Haishkaki” (Retórica do jogo de xadrez) atribuída ao rabino francês Bonsenior Ibn Yahya, sábio judeu da região de Provença. Para alguns estudiosos existe a possibilidade que o texto em sua versão espanhola tenha sido compilado com anterioridade, embora a “editio princeps” foi anonimamente publicada na obra “Mishlê Shualim” do exegeta, gramático, tradutor, poeta e filósofo Berechyah ben Natronai Krespia Nakdan, na cidade de Mantua, por volta de 1557-1558.

Um resumo do texto original de Thomas Hyde, de difícil leitura, vem a seguir:

“O Rei (branco) está parado no quarto quadrado, com a Rainha à sua direita; cada um deles tem dois cavalheiros (farash ou suss); dois elefantes (pil), e duas outras peças estacionadas: são os heróis (guiborim). O Rei movimenta uma posição para todas as direções, já o elefante avança obliquamente para o terceiro quadrado, o cavalheiro marcha uma posição no sentido diagonal e logo uma em linha reta; e a torre anda em linha reta na horizontal e vertical. Nunca o Rei poderá ficar desprotegido.  A Rainha no primeiro movimento pode movimentar-se dois ou três espaços para qualquer direção que desejar, mas logo depois, apenas um lugar inclinado. O Rei (preto) é colocado no quarto quadrado branco com a Rainha a sua esquerda. Além disso, não há diferença entre um lado e outro. As peças pretas vão ganhar a partida pelo número de peões que avançam diretamente tomando as posições inclinadas e atingindo o limite superior do tabuleiro, podendo converter-se em Rainhas”.

A prosa de Bonsenior Ibn Yahya acima mencionada nos ensina que os peões em jogo são denominados “guiborim” (heróis), um termo que passou de um manuscrito hebraico versado em xadrez.

O bibliógrafo e orientalista alemão Moritz Steinschneider, na sua relevante obra “Schach bei der Juden” (citada por H.R. Murray, History of Chess) traz o texto hebraico completo com dois poemas que abordam o jogo de xadrez na idade média. O primeiro deles é um manuscrito de 38 linhas atribuído ao rabino Salomão ben Mazaltov de Constantinopla (1513-1549), e pertence à “Coleção Bodleiana”. Um segundo manuscrito de apenas 14 linhas é o manuscrito do Vaticano, aparentemente redigido no século 15.

Ambos os manuscritos hebraicos são uma imitação da versão de R. Abraham Ibn Ezrah, e não acrescentam absolutamente nada sobre o xadrez na época medieval. O xadrez foi patrimônio tanto de judeus como de não judeus. Este jogo milenar trazido do Oriente, deu origem à disputas lúdicas entre os mesmos judeus, e inclusive entre judeus e gentios.

Podemos concluir dizendo que este atrativo passatempo foi uma fiel expressão do cotidiano medieval. Assim, tentei apresentar a atitude dos judeus para com o jogo de xadrez a partir de uma ótica diferente, acentuando sempre pontos de vista e opiniões controversas. Desta forma, o leitor interessado nestes tópicos, poderá facilmente chegar a suas próprias conclusões.

BIBLIOGRAFIA

Abrahams, Israel, Jewish Life in the Middle Ages. London 1896, pp. 388-398.

Branch, W.S., A Sketch of Chess History, British Chess Magazine 1890-1900.

Ha-Enziklopedia Ha-Ivrit, vol. 31, pp. 701-711 (v. shah-mat).

Hyde, Thomas, The Hebrew Poem on the Game Shah Mat attributed to Abraham Ibn Ezrah. In: Mandragorias sua Historia Shahiludii, 2 vols. 1767, vol. II, esp. pp. 163-166.

Keats, Abraham Victor, Chess in Jewish History and Hebrew Literature. Dissertation submitted for the degree of Doctor of Philosophy of the University of London, 1993.

Murray, H.R., History of Chess, Oxford Clarendon Press 1913, reprinted 1962, esp. pp. 526-528.

Prinz, Joachim, Popes from the Ghetto: A View of Medieval Christendom. Schocken Books, New York 1968, pp. 17-20. (The Legend of the Jewish Pope as Told by Micha bin Gorion).