Uma modelo fotografada na banheira de Hitler?

Num texto intitulado “On the Destruction of Art or Conflict and Art, or Trauma and the Art of Healing: Über die Zerstörung von Kunst – Oder Heilung (100 Notes – 100 Thoughts dOCUMENTA 13)”, publicado em 2011; a curadora americana Carolyn Christov Bakargiev interpreta a fotografia obtida numa parceria entre a modelo Elizabeth (Lee) Miller (1907-1977) e o jornalista da Life Magazine David E. Scherman (1916-1997), na qual a primeira se instala no apartamento de Hitler em Munique por três dias, fotografando-se dentro de sua banheira.

Esta fotografia inédita foi registrada na tarde do dia 30 de abril de 1945, depois de ambos terem feito pela manhã uma rápida visita ao campo de concentração de Dachau. Naquela ocasião, um colunista do célebre jornal New York Times fez as seguintes considerações: “A picture of the Führer balances on the lip of the tub; a classical statue of a women sits opposite it on a dressing table; Lee, in the tub, inscrutable as ever, scrubs her shoulder. A woman caught between horror and beauty, between being seen and being seer” [Um retrato do Führer se equilibra no extremo da banheira, uma estatua clássica de uma mulher aparece no lado oposto sob uma mesa decorada; Lee, na banheira, impecável como sempre; esfrega suas costas. Uma mulher surpreendida, entre o horror e a beleza, entre ver e ser vista].

Enquanto Elizabeth Miller e David E. Scherman entravam em Munique com a 45ª Divisão de soldados americanos para libertar a cidade de Munique; Adolf Hitler no seu bunker perto de Berlim cometia suicídio. A modelo e o fotógrafo haviam feito uma parceria entrando numa casa delapidada, o apartamento localizado na Prinzenregentplatz 27, a morada do Führer em Munique. Ali, em 29 de setembro de 1938, Neville Chamberlain e Edouard Daladier (representando a Inglaterra e a França respectivamente) e o Ducce italiano Benito Mussolini; haviam assinado o “Pacto de Munique” decidindo renunciar por completo à Tchecoslováquia em favor do Führer.

A fotografia da modelo Elizabeth Lee Miller na banheira de Adolf Hitler gerou uma polarização de opiniões, despertou uma dupla fascinação: por um lado oferece um olhar especial à vida íntima do Führer, como se câmaras e equipes de filmagem espiassem os palácios de um destronado ditador; e pelo outro a encenação de Miller vira um soco no estomago da Alemanha, pelo contraste entre as botas sujas e a pele de víbora de Hitler; ambos substituídos por um delicado corpo feminino.

Para alguns a nudez de Lee na banheira de uma das figuras mais repulsivas da história, transmitia um ar doentio, quase patológico.  Especialmente, para os americanos, era uma forma de desabafar em voz alta “to the victor goes the spoils” [para o vencedor o botim, os despojos da guerra]. Já para outras pessoas, a imagem representa a vitória da vida diante a morte. A modelo não quis entrar na polêmica suscitada, mas chegou a comentar abertamente na revista Vogue, que na banheira “tratou de retirar de seu corpo os odores penetrantes de Dachau”.

Talvez por isto, para a curadora da 13ª dOCUMENTA, Carolyn Christov-Bakargiev, esta imagem é uma foto indireta dos campos. Ela transmite um silencio traumatizante que, por sua vez, remete à impossibilidade de um discurso; depois de tudo aquilo que foi visto naquela manhã no campo de Dachau. A foto é também sepulcral, pois foi feita exatamente no mesmo dia do sepultamento do Terceiro Reich; afinal a morte do Volksführer (o líder do povo) nos remete à morte de seu próprio regime.

Simbolicamente, é como se o corpo de Elizabeth Miller “substituísse” o corpo de Hitler. Um corpo toma o espaço da aura, toma o lugar do mito. É como se ela mesma, a modelo Lee Miller, assumisse o papel das próprias vítimas; esfregando-se com os crimes perpetrados. É também uma fotografia mítica, pois representa uma tentativa única de salvar, limpar e redimir a Humanidade de seus pecados.

Por outra parte, cabe perguntar-se também se esta foto de David Scherman não seria um desabafo feminista contra um mundo louco, sem noção, militar e patriarcal; emprestado pela própria imagem?  Christov-Bakargiev nota ainda a “permissividade e obscenidade revelada por esta fotografia, flagrando a força da vida e a sensação, quase de parentesco; com o sobrevivente; captada pela câmara em Dachau naquela manhã de 30 de abril de 1945”. É possível que Elizabeth Lee Miller fosse acometida por náuseas e uma forte depressão após ter visitado o campo libertado.

A dOCUMENTA 13 apresentou mais fotos de Lee Miller, todas tiradas dentro do pequeno apartamento de Adolf Hitler na Prinzregentenplatz de Munique, como também imagens dos campos de concentração e os bombardeios das cidades.

Também foram expostos alguns objetos pessoais de Hitler, encontrados por Lee Miller e David Scherman. Quais seriam estes objetos? Havia no apartamento um frasco de perfume de Eva Braun, um pó cosmético para rosto e uma toalha com as iniciais AH pertencente ao Führer. Trata-se de objetos simples, frios e “intratáveis” desafiando constantemente o espectador traumatizado, como o fez com o jovem soldado (depois escritor) Walter Benjamin; quem lembrou sua silenciosa volta do campo de batalha mais pobre em experiências comunicáveis.

A imagem de Lee Miller através da lente de Scherman nos ensina que o mito do Führer está despido de sua pele original, e agora ele se nos apresenta como um “rei nu” privado daquela máscara que o transformou em um dos maiores ditadores de todos os tempos.