Vinícius de Moraes e o Holocausto

Texto completo na revista digital ARQUIVO MAARAVI Vol. 17, No. 32, 2023. Publicado: 2023-05-31. (https://periodicos.ufmg.br/index.php/maaravi/article/view/45214/37853).
Ao evocarmos o nome Vinícius de Moraes, lembramos o poeta versátil e polivalente, o homem que transitou pela música, pelo cinema e o teatro. Ao lado do maestro Tom Jobim, Vinícius deu enorme impulso à MPB (Música Popular Brasileira), com o revigoramento da Bossa Nova. Ele é o trovador dos amores infinitos, dos sonetos da separação, o poeta lascivo, trovando para todas as mulheres as sonatas do amor perdido. Suas músicas e poesias podem ser ouvidas estilizadas em comerciais de televisão, quase sempre direcionados ao universo feminino. Boa parte dos jovens sabe cantarolar a música Garota de Ipanema, aliás, uma das canções mais famosas no mundo.
Para Alfredo Bosi, Vinícius de Moraes é, talvez, depois do renomado Manuel Bandeira, o mais intenso escritor erótico da literatura brasileira. Trata-se de um tipo de erotismo sutil, envolto em pudores de quem foi educado por jesuítas. Para Bosi, Vinícius “oscila entre as angústias do pecador e o desejo do libertino” (1. BOSI, 1983, p. 83).
Mas Vinícius não é apenas o poeta do amor que se afoga entre a sensualidade e a oração, nem só o poeta adocicado das garotas de Ipanema. Ele é também um lírico entristecido com o fatídico adeus de outros escritores. Vinícius é o cantor da despedida e da morte. Desolado com o suicídio do poeta modernista norte-americano Hart Crane (1899-1932), escreve, em 1932, a bela elegia “O poeta Hart Crane suicida-se no mar”. Ele ainda redige sob o impacto do fuzilamento do dramaturgo espanhol Federico Garcia Lorca (1898-1936), as estrofes de “A morte de madrugada”.
Já para o velório de Mário de Andrade (1893-1945), compõe um doloroso poema intitulado “A manhã do morto”. Na noite de 25 de fevereiro de 1945, Vinícius sonha que vários amigos seus perderam a vida num desastre de avião, em meio a uma inexplicável viagem para São Paulo.
Vinícius é também o artista alarmado com os muitos problemas sociais, um trovador engajado e politizado, um poeta com textos sensíveis e tocantes. O poeta estava disposto a denunciar tanto a pobreza do operário em construção, como a intensa luta das prostitutas do mangue, além das catástrofes oriundas da Segunda Guerra Mundial, dentre elas, os campos de concentração da Alemanha nazista e as bombas de Hiroshima e Nagasaki.
O poema “Balada dos mortos dos campos de concentração” (1954) de Vinicius diz assim:
Cadáveres de Nordhausen Erla, Belsen e Buchenwald!
Ocos, flácidos cadáveres
Como espantalhos, largados
Na sementeira espectral,
Dos ermos campos estéreis
De Buchenwald e Dachau.
Cadáveres necrosados
Amontoados no chão
Esquálidos enlaçados
Em beijos estupefatos
Como ascetas siderados
Em presença da visão.
Cadáveres putrefatos
Os magros braços em cruz
Em vossas faces hediondas
Há sorrisos de giocondas
E em vossos corpos, a luz
Que da treva cria a aurora.
Cadáveres fluorescentes
Desenraizados do pó
Que emoção não dá-me o ver-vos
Em vosso êxtase sem nervos
Em vossa prece tão-só
Grandes, góticos cadáveres!
Ah, doces mortos atônitos,
Quebrados a torniquete
Vossas louras manicuras
Arrancaram-vos as unhas
No requinte de tortura
Da última toalete…
A vós vos tiraram a casa
A vós vos tiraram o nome
Fostes marcados a brasa
Depois vos mataram de fome!
Vossas peles afrouxadas
Sobre os esqueletos dão-me
A impressão que éreis tambores
-Os instrumentos do Monstro –
Desfibrados a pancada:
Ó mortos de percussão!
Cadáveres de Nordhausen Erla, Belsen e Buchenwald!
Vós sois o húmus da terra
De onde a árvore do castigo
Dará madeira ao patíbulo
E de onde os frutos da paz
Tombarão no chão da guerra!2 e 3

(2. Poema publicado no Rio de Janeiro em 1954 e também em 3. MORAES, 1999).

Dessa forma, com “Balada dos mortos dos campos de concentração”, o poeta recupera uma forma medieval de fazer versos, a balada; que é o embrião do teatro e da dança, para rimar, de modo inusitado, hediondas com giocondas. Tudo sobre o arcabouço melódico da redondilha maior, a qual empresta ao poema uma cadência rítmica marcada pelo lamento e a tristeza.
Para quem fez tantos e tantos poemas clamando que a “beleza é fundamental”, eis que chegou o momento de compor versos sobre os horrores provenientes dos cadáveres torturados em decomposição. Lembremos que o “belo”, na modernidade, prenuncia-se no “feio” e adquire sua inquietude, como queria Charles Baudelaire (1821-1867), mediante a absorção do bizarro, do grotesco e do espantoso. (4. FRIEDRICH, 1991, p. 44).
Quando eclodiu a Segunda Guerra em1 de setembro de 1939, Vinícius já estava na Inglaterra estudando literatura inglesa em Oxford. Imediatamente, ele foi obrigado a abandonar seus estudos e regressar ao Brasil, trazendo na sua mala as reminiscências terríveis de uma Europa atormentada e em plena convulsão.
O totalitarismo de Hitler incluía, dentre outras loucuras, o massacre dos judeus encarcerados em campos de concentração. Quando Vinícius publicou, em 1946, o livro Poemas, sonetos e baladas, do qual faz parte o poema acima, a guerra já havia terminado, iniciava-se agora a contagem dos mortos: centenas, milhares deles. O mundo tinha pouco a comemorar, o povo judeu, muito menos: seis milhões haviam sido exterminados pelo rolo compressor do racismo e do ódio.
É notório que os campos de concentração não foram inventados pelos alemães, eles datam das guerras coloniais. Foram os espanhóis, em Cuba, durante a Guerra da Independência, em 1898, que, pela primeira vez, fizeram uso dessa arma estratégica, encarcerando massas de camponeses. Foi, contudo, no regime nacional-socialista que esse conglomerado humano adquiriu fama, ganhou fôlego, alastrando-se da Alemanha nacional-socialista para demais regiões da Europa: Áustria, Polônia, Iugoslávia, Ucrânia, Noruega, Holanda, Bélgica e França.
O primeiro lager(campo de concentração) que serviu como modelo para a criação dos demais foi Dachau, criado em 1933, quando Hitler foi aclamado Chanceler do Terceiro Reich. Vinícius enumera em seus versos os mais conhecidos e sinistros: “Nordhausen, Erla, Bergen Belsen, Buchenwald, Dachau”.Por essas prisões, passaram milhares de detidos; se a grande maioria consistia de judeus, havia também outros grupos perseguidos como os ciganos, comunistas, homossexuais, deficientes físicos e mentais, dissidentes políticos, anarquistas e Testemunhas de Jeová. Tudo isso em nome da purificação da raça: uma raça pura, ariana, como queria o Führer, isentada contaminação judaica e de elementos considerados nocivos. O grotesco e o disforme não poderiam ser poupados.
Em trechos de Mein Kampf, Hitler não deixa dúvidas: os judeus são como ratos a infestar as nossas cidades, portanto devem ser exterminados. E mais: os nazistas odiavam também os latino-americanos, tidos como raça híbrida e inferior, tanto que os livros de Thomas Mann, autor de “A montanha mágica”, foram proibidos na Alemanha, no período da Segunda Guerra, não por ele ser judeu e sim por ter como genitora a escritora Júlia da Silva Bruhns, sua mãe latina. Jorge Amado (1912-2001) explica-nos que o maior crime de Tomas Mann era ele “ser filho de mãe brasileira e não ter, por consequência, puro sangue ariano” (5. AMADO, 2008, p. 31).
É bem curioso que brasileiros adeptos ao neonazismo desconhecem ou se esquecem deste fato: os simpatizantes latinos do regime fascista foram os primeiros a serem fuzilados pela Gestapo por considerados mestiços, ou seja, impuros.
Voltando ao poema, os sofrimentos das vítimas do Holocausto são intuídos por Vinícius de forma incisiva nos versos: “Ocos, flácidos cadáveres/como espantalhos largados”. Ocos, já que os prisioneiros, depois de serem submetidos ao confisco de seus bens materiais, perdiam também sua identidade e, consequentemente, sua própria dignidade. “Flácidos”, por serem submetidos a um regime de inanição e fome, passando a pão e água, de vez em quando, uma sopa rala e sem calorias. Trabalhavam em tarefas inúteis, estafantes e pesadas: quebravam pedras, carregavam areia, cavavam valas. Eram trabalhadores subnutridos, expostos à neve, à chuva, ao frio, ao sol escaldante. Após mortos, assemelhavam-se a verdadeiros “espantalhos”, abandonados ao relento, amedrontando pássaros e apavorando os vivos. Nem todos morriam de inanição, alguns preferiam o suicídio, enquanto outros enlouqueciam.
A filósofa Hannah Arendt (1906-1975), ao refletir sobre o sistema totalitário e os campos de concentração observa que é apenas aparente a inutilidade dos campos, a sua anti-utilidade cinicamente confessada. Na verdade, nenhuma outra das suas instituições é mais essencial para preservar o poder do regime. Sem os campos de concentração, sem o medo indefinido que inspiram e sem o treinamento muito definido que oferecem em matéria de domínio totalitário, que em nenhuma outra parte pode ser inteiramente testado em todas as suas radicais possibilidades, o Estado totalitário não pode inspirar o fanatismo das suas tropas sem manter um povo inteiro em completa apatia (6. ARENDT,1999, p. 565).
Vinícius evoca os “cadáveres necrosados, amontoados no chão”. Uma cena aterradora que imediatamente nos remete às fotografias dos livros de história, delatando as centenas de corpos amontoados em valas comuns. Mas é, talvez, Primo Levi, testemunha e vítima, que experimentou os rigores das milícias nazistas, quem melhor descreve os tormentos impostos aos prisioneiros.
Primo Levi expõe que, dentre os prisioneiros, alguns eram escolhidos para fazer parte de algo terrível, o Sonderkommando. Levi relata que dentre os prisioneiros, alguns eram escolhidos para manejar os fornos crematórios e acionar as câmaras de gás: Com esta denominação deliberadamente vaga, Esquadrão Especial, era indicado pelos SS o grupo de prisioneiros aos quais estava confiada a gestão dos fornos crematórios. A eles cabia manter a ordem entre os recém-chegados (muitas vezes, inconscientes do destino que os esperava) que deviam ser introduzidos nas câmaras de gás; tirar das câmaras os cadáveres; extrair o ouro dos dentes; cortar o cabelo das mulheres; separar e classificar as roupas, os sapatos, o conteúdo das bagagens; transportar os cadáveres para os fornos crematórios e cuidar do funcionamento dos fornos; retirar e eliminar as cinzas (7. LEVI, 1990, p. 26).
Levi menciona, ainda, que raros foram os participantes desse Esquadrão Especial que escaparam com vida, a maioria foi eliminada antes do término da guerra, uma vez que os nazistas não admitiam que portadores desse horrendo segredo pudessem sobreviver para relatá-lo à posteridade.
“A vós vos tiraram a casa / a vós vos tiraram o nome /fostes marcados em brasa / depois vos mataram de fome”, escreve Vinícius de Moraes. Esses versos, com suas rimas soantes, ficam ecoando pelo poema como a entoação de uma ladainha, a recitação de um salmo, quase que balbuciando uma oração. Depois de perder seus bens materiais, as vítimas perdiam também a condição de ser humano. Relegados ao plano dos animais, elas eram também marcadas com ferro em brasa. Mais uma vez, o grande memorialista Primo Levi, relata que a ação de tatuar o corpo dos prisioneiros como gado era um procedimento rotineiro nos campos de concentração:
“A operação era pouco dolorosa e não durava mais que um minuto, mas era traumática. Seu significado simbólico estava claro para todos: este é um sinal indelével, daqui não sairão mais; esta é a marca que se imprime nos escravos e nos animais destinados ao matadouro, e vocês se tornaram isso. Vocês não têm mais nome: este é o seu nome. A violência da tatuagem era gratuita, um fim em si mesmo, a pura ofensa…” (8. LEVI, 1990, p. 26. A imagem do prisioneiro como gado marcado aparece ainda nos poemas do escritor Jorge Amado. Ver: NASCIMENTO, 2007, p. 119).
Vinícius fala ainda das “peles frouxas de pancadas”. Pancadas horrendas, desferidas sobre corpos ossudos, espécie de tambores arrebentados pela dureza dos castigos impetrados pelos carrascos. A espantosa comparação, aproximando os sofrimentos dos judeus à percussão de um instrumento musical, no verso “Ó mortos de percussão”, também nos remete às lamúrias das mulheres e das crianças, já que elas eram as primeiras a serem sacrificadas nas câmaras de gás. Adolf Eichmann, um dos oficiais nazistas julgados em Jerusalém, durante interrogatório, afirmou que, enquanto trabalhou burocraticamente como coordenador dos campos, às vezes, passava horas observando as imensas filas de judeus nus, balbuciando preces. Eichmann comenta que “eles avançavam inocentes, pelos longos corredores para serem asfixiados com ácido ciânico” (9. ARENDT, Eichmann, p.26).
Ao final do poema, Vinícius clama: “Vós sois o húmus da terra / De onde a árvore do castigo/ Dará madeira ao patíbulo / E de onde os frutos da paz /Tombarão no chão da guerra!” (10. MORAES, 1999, p. 149).
O poeta brasileiro compara os judeus ao “húmus da terra”. Como falar impunemente sobre os judeus e não mencionar a revolução intelectual desencadeada por muitos deles? Eles são a fertilidade da civilização ocidental. Sabemos que são inúmeras as personalidades judaicas que mudaram a nossa concepção do mundo e de nós mesmos. Podemos elencar entre eles a Baruch Spinoza, Karl Marx, Sigmund Freud, Albert Einstein, Walter Benjamin, entre outros (11. A queima pública das obras desses autores judeus, considerada literatura degenerada, aconteceu em 10 de maio de 1933). Sem nos esquecermos de citar escritores excepcionais que mudaram o curso da literatura no Brasil e no mundo: Franz Kafka, Philip Roth, Samuel Rawet, Clarice Lispector, Moacyr Scliar, dentre outros (12. PEREIRA, 2013, p. 233-251).
Já os últimos versos que fecham o poema “E onde os frutos da paz/ tombarão no chão da guerra”, parecem mais uma profecia a ecoar pelo futuro, um vaticínio assustador. A árvore da paz trará também a guerra. Supostamente, a criação do Estado de Israel, em 1948, deveria trazer a concórdia e a tranquilidade à região. Mas, isto não aconteceu. Os exércitos dos países árabes vizinhos não aceitaram o surgimento do Estado judeu. O longo conflito entre o Estado de Israel e alguns dos países vizinhos (também com o povo palestino) ainda não acabou.
As guerras não cessaram. Para o renomado historiador britânico Eric Hobsbawm, o século XX foi o mais assassino da história. “O número total de mortes causadas por ou associadas a suas guerras foi estimado em 187 milhões, o equivalente a mais de 10% da população mundial em 1913” (13.HOBSBAWN, 2002, p. 15).
Seguindo as reflexões de Theodor Adorno (14. ADORNO, 1962 e 1995. Nas suas obras, algumas traduzidas ao português, Adorno faz uma profunda reflexão sobre a falta de sensibilidade do ser humano em relação ao acontecido durante a Segunda Guerra nos campos de concentração e extermínio nazistas. Para o sociólogo e filósofo, ensinar é um estado de crítica permanente e a “exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação”) resta saber o que nos reservará o século 21? Nessas primeiras duas décadas do novo milênio, presenciamos estupefatos atentados terroristas, conflitos no Oriente Médio que impulsionam uma nova onda de antissemitismo; uma turbulência econômica na América Latina e na Europa; a multiplicação das bombas atômicas; um aumento descontrolado do tráfico de drogas e da violência nas grandes cidades, bem como a constante devastação do meio ambiente.
O que mais nos restará? É significativo pensar que a análise de um único poema de Vinícius de Moraes poderá proporcionar inúmeros debates e múltiplos conhecimentos de história, antropologia, geografia e filosofia.
Referências
ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
ADORNO, Theodor. Prismas: La crítica de la cultura y la sociedad. Barcelona: Ediciones Ariel, 1962.
ALMEIDA PEREIRA, Kênia Maria de. A temática do Holocausto no ensino de literatura brasileira: um poema de Vinícius de Moraes e uma tela de Lasar Segall. ABRALIC vol. 15, n. 22, 2013, p. 233-251.
ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
ARENDT, Hanna. O sistema totalitário. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1983.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1991.
HOBSBAWM, Eric. A epidemia da guerra. Folha de S. Paulo, 14 abr. 2002.
LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
MORAES, Vinícius. Antologia poética. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
MORAES, Vinicius. Balada dos mortos dos campos de concentração. Disponível em: https://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/poesias-avulsas/balada-dos-mortos-dos-campos-de-concentracao. Acesso em: 14 abr. 2022.
NASCIMENTO, Lyslei. Poetas em tempos sombrios: Vinícius e Amado. In: NASCIMENTO, Lyslei; NAZARIO, Luiz (org.).Estudos judaicos: Brasil. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2007. p. 107-121.