ZYGMUNT BAUMAN E O HOLOCAUSTO

Durante minhas aulas sobre o Holocausto, alunos me perguntam: Como foi possível uma tragédia de tamanha dimensão? Que condições permitiram este acontecimento? Quem são os responsáveis? Que lição extrair? Devemos emitir (ou não) julgamentos acerca da participação de cada uma das partes envolvidas: perpetradores, vítimas e observadores? Existe ainda algo a aprender sobre a natureza humana?

Primeiras reflexões

O escritor judeu italiano Primo Levi (1919-1987), sobrevivente de Auschwitz; entendeu não só que o Holocausto é difícil de ser explicado, mas que não devemos sequer interpretá-lo, pois explicá-lo seria neutralizar seu próprio efeito; seria desativar a pergunta e, com isso, amenizar a responsabilidade não só dos perpetradores carrascos, mas de seus herdeiros.

Que significa ser responsável pelo Holocausto? A responsabilidade “pelo” Holocausto haverá de sumir com seus responsáveis, e, em termos históricos, não resta demasiado tempo para isto acontecer. Pelo contrário, a grande responsabilidade ante o Holocausto é o destino de cada um de nós como humanidade sobrevivente que vem reconstituíndo sua vida das cinzas da 2ª Guerra Mundial, reconstrução feita sobre cadáveres empilhados nas fotografias dos “lagers”, ou ainda sobre uma montanha de corpos ausentes que jamais apareceram sequer para testemunhar a própria morte.

O termo “Holocausto” significa “hólos” (inteiro), e “kaíein” (queimar), ou seja, destruir por completo uma vítima, sendo seus restos achados em fossas; documentado nas fotografias que diminuem o caráter absoluto da própria destruição. Colocado de outra forma: O Holocausto encontra sua forma mais pura nas vítimas, nos seus desaparecidos.

Nossa maior responsabilidade como herdeiros do Holocausto reside no fato de impor o dever de compreender. Há no Holocausto algo que não podemos nem poderemos nunca entender. Ao explicar desejamos converter um determinado acontecimento em “realidade histórica”, permitir que o brutal fenômeno pertença ao passado; ficando como mero objeto de omissão e desmemória. Toda explicação é um esquecimento. Compreender é necessário, é o exercício mais intenso da memória, é um exercício inacabado, indefinido, interminável, que leva nosso cérebro a lugares novos, revelando aspectos que nunca foram atuais. A compreensão e a memória reconstituem “algo” que aconteceu de forma efetiva. Eles juntos impedem que o objeto “Holocausto” se converta apenas em um relato meramente histórico.

Compreender é necessário para mentalizar quem nós somos e o que podemos chegar a ser; compreender é poder captar – cognitivamente ou emocionalmente – “por que a experiência denominada Holocausto contém informações de fundamental relevância sobre a sociedade da qual fazemos parte”.

Modernidade e Holocausto

Esta reflexão visa apresentar os principais motivos que se vinculam ao Holocausto e a vida dos judeus no “lager”, através do olhar do sociólogo Zygmunt Bauman. Estes argumentos foram analisados na sua obra “Modernity and the Holocaust” em 1989. Já no início do texto Bauman afirma: “Como a maioria de meus colegas sociólogos, considerava o Holocausto, no melhor dos casos, algo que devia ser explicado pelas ciências sociais e não, certamente, um fenômeno capaz de lançar luz sobre o objeto de nossos atuais interesses. Acreditava (…) que o Holocausto representava uma interrupção (hiato) no curso normal da história, uma formação cancerígena crescida no corpo de uma sociedade civil, uma locura momentânea num contexto de sabedoria”.

Neste trecho Bauman faz um convite para prescindir da sociologia e seus métodos, para tentar explicar o Holocausto. Ele acredita serem as ciências sociais as disciplinas que deveriam dar explicações, porém elas também esqueceram o essencial. O Holocausto não admite ser reduzido a uma metodologia que o defina como problemática científica, menos ainda pela sociologia, uma disciplina que exclui a barbárie da civilização ocidental; eximindo as ideologias e neutralizando a violência dos instintos primários e das formas descontroladas de agressividade. Segundo esta ideia, o Holocausto vem manifestando a decadência (ponto mais baixo e mais deplorável da espécie humana); testemunhando a agressividade instintiva postulada pelo etnólogo austríaco Konrad Lorenz (1903 – 1989), e a incapacidade de controlar violentas emoções, tão estudada pelo escritor judeu-húngaro Arthur Koestler (1905 – 1983).

Como fenômeno extremo de violência e sadismo humanos, o Holocausto pode ser também interpretado como um verdadeiro fracasso da civilização no que tange à organização social, à ruptura de uma normalidade quebrada por alguns paradigmas pré-existentes. Esta imagem desenvolvida no interior das ciências sociais será totalmente desmontada peça por peça por Bauman, para mostrar um Holocausto diferente, um assassinato entendido não apenas como a incapacidade da civilização, mas como um “terrível produto” produzido por ela mesma. Surge assim uma imagem diferente: o Holocausto como um “perigo gerado pela inercia moral e política nascida dos mecanismos da boa consciência”. 

As condições e as possibilidades que permitiram o extermínio burocrático de milhões de seres humanos ficaram intatas: o Holocausto – ensina Bauman – não tem sido só a interrupção de uma normalidade desejável, mas uma das possibilidades inscritas nela, um avatar de nossa normalidade humana, “uma combinação única de fatores ordinários e comuns”.

Segundo Bauman, um estudo sério do Holocausto que procure apropriar-se de sua mensagem, deverá prescindir de dois maus entendidos essenciais: o primeiro será considerar o episódio como uma “continuação do antissemitismo”, como um fenômeno exclusivamente judaico. O segundo será tratar de abordar seu significado dentro de um contexto de taras e patologias a serem arquivadas, pois elas nos remetem a seus executores, algo a ser analisado como um capítulo da história da loucura.

A cultura da burocracia

O Holocausto pode ser visto como um produto originário da cultura burocrática, uma vez que seu impecável funcionamento e sistemática execução beiravam à perfeição. Para Bauman o Holocausto teve, então, sua “razão instrumental”. Que significa isto? Basicamente, que esta tragédia foi idealizada através de considerações burocráticas da sociedade alemã, foi concebida através de necessidades administrativas, como parte integral de um complexo de problemas a serem resolvidos da maneira mais eficaz; controlando a natureza, dominando materiais e aplicando-os a projetos de engenharia social.

Cada detalhe do Holocausto – explica Bauman – era normal, “normal no sentido de uma plena coerência com todo aquilo que sabemos sob nossa civilização, de seu princípio inspirador, de suas prioridades, de sua imanente visão de mundo”. O pensador judeu-polonês decodifica o Holocausto como um “laboratório da modernidade”, como um “aprimoramento da civilização moderna”.

Henry L. Feingold tem explicado de maneira precisa esta ideia num trabalho intitulado “How unique is the Holocaust?”. Nele o historiador afirma categoricamente: “Auschwitz foi também uma expressão do moderno sistema fabril. Em lugar de produzir mercadorias, onde se utilizava seres humanos como matéria prima e obtinha-se a morte como produto final… As chaminés, símbolo do moderno sistema fabril, deixavam sair fumaça escura da combustião da carne humana. A rede ferroviária da Europa moderna, perfeitamente organizada, transportava às fábricas um novo tipo de matérias primas, da mesma forma como o fazia com outros materiais. Nas câmaras de gás, as vítimas respiravam vapores tóxicos produzidos por pastilhas de ácido fabricadas pela avançada indústria química alemã. Os engenheiros projetaram crematórios, administradores criaram um sistema burocrático que funcionava com o fervor e a eficiência que qualquer uma das nações mais atrasadas teria invejado. Incluso o mesmo projeto era um reflexo do moderno espírito científico desviado de seu caminho. Não se tratava de nenhuma outra coisa a não ser de um imenso projeto de engenharia social”.

Em nenhum momento o processo de execução do Holocausto entrou em contradição com a racionalidade instrumental das diversas etapas, nem com os paradigmas pelos que norteamos nosso conhecimento, nossa cultura política, nosso sistema de produção, nossos mecanismos de informação, nossa divisão do trabalho e até nossa linguagem. Bauman lembra-nos ainda que, o departamento responsável pela “judenfrage” (questão judaica) era chamado “Seção administrativa e econômica”, e lá atuavam os “experts”, especialistas em judeus.

Para Zygmunt Bauman, a precisão do programa de extermínio aliada à eficiência nazista, são determinantes na compreensão da dimensão e magnitude do Holocausto. A racionalidade dos nazistas com seu caráter dominante permitiu alcançar “soluções finais” desejáveis. O problema em jogo era a presença dos judeus na Europa e isto devia ser resolvido através da eliminação dos mesmos. É uma situação que devia ser encarada com total normalidade através de procedimentos que visem uma optimização; aplicando-se regras universais e instrumentando passos eficazes para neutralizar eventuais anomalias e imprevistos.

Num outro trecho Bauman escreve: “A luz que o Holocausto lança sobre nosso conhecimento acerca da racionalidade burocrática, obtém seu máximo efeito iluminador, ao compreender-se até que ponto a ideia de ‘solução final’ é um produto da cultura burocrática”. Que pretende afirmar o sociólogo polonês? Confirmando a supremacia da escola funcionalista sobre a escola intencionalista, Bauman descarta que a intenção de destruir os judeus tenha sido o projeto originário de Hitler. A intenção era ter um “Reich judenfrei” (uma Alemanha livre de judeus), colocando-se em marcha etapas como o boicote social, a deportação à Polônia conquistada (projeto que encontra resistência na burocracia alemã), a ocupação de territórios aumentando a força de trabalho com os judeus locais, etc.

Não esqueçamos o “Projeto Madagascar”, no qual Adolf Eichmann trabalhou um ano inteiro, tornando-se praticamente inviável tanto pela dificuldade em transportar judeus pelo mar, como pela presença permanente da marinha britânica na África. Uma outra alternativa era tentar transportar os judeus até a URSS, mas a rendição dos russos não acontecia, ampliando ainda mais o problema judaico.

Em outubro de 1941, foi decidida a “Solução Final”, o extermínio sistemático dos judeus. Era a medida mais eficaz para manter um Reich jundenfrei. Bauman mostra que a “Solução Final do Povo Judeu” foi resultado da adoção de procedimentos burocráticos normais, uma avaliação entre meios e fins, o “resultado de um esforço extremamente sério para encontrar uma solução racional a uma série de problemas pela transformação das circunstâncias”. Sua modalidade foi à aplicação de recursos técnicos a uma categoria de objetos determinados (judeus), por parte de uma classe de experts (especialistas); organizados em função de um conjunto variável de especializações.

Singularidade, rotina e obediência.

Há um dado que impede sintetizar uma discussão sobre o Holocausto em um fato antissemita. Qual seria esse dado? É sabido que no momento da consolidação do nacional-socialismo; “o antissemitismo popular alemão era muito menor que o ódio existente pelos judeus em outros tantos países da Europa. Alemanha era ampliamente reconhecida a nível internacional pelos judeus como um oásis de igualdade nacional, religiosa e de tolerância”.  

De fato, o Holocausto nunca apresentou o formato que tiveram os pogroms através da história. O ódio imediato e espontâneo foi substituído pela ação planificada, o furor homicida por uma obediência e uma disciplina perfeitas, o impulso incontrolável das multidões por mecanismos burocráticos ativados por homens que trabalham seguindo a rotina cinzenta do funcionário público. A rigor, o único porgrom que aconteceu na Alemanha durante todo o Holocausto foi a “Kristallnacht” em novembro de 1938, violência promovida pelas mais baixas paixões das massas.

Ao contrário daquilo que se pensa, a destruição dos judeus nos campos de extermínio adquiriu a forma de frios procedimentos de rotina, de exercícios metódicos de gestão racional, e foi precisamente isto o que determinou, de maneira decisiva, sua singularidade. Hoje sabemos que os funcionários da destruição não foram sádicos demenciados, nem loucos, nem anormais fanáticos, nem apresentavam qualquer tipo de taras morais. Tampouco estavam motivados por paixões externas, nem eram pessoas agressivas. Sabia-se, certamente, que “os assessinatos provocados pelo desejo de prazer (…) podiam encaminhar a um tribunal e à prisão”.

Segundo Bauman, o que realmente permitiu o processo de execução do Holocausto foi uma obediência mecânica à autoridade: a organização, a disciplina e a ordem. A destruição dos judeus em grande escala teria sido impossível sem uma excelente coordenação de funções extremamente centralizada, profissional, impessoal, concebida menos como um massacre que como uma operação higiénica de purificação.

O genocídio moderno não pode ser entendido apenas como a simples vontade de exterminar o inimigo. Esta não é sua finalidade, mas apenas um de seus meios. O objetivo derradeiro do genocídio é a criação de uma nova sociedade, segundo Bauman: “O genocídio moderno é um elemento de engenharia social que pretende alcançar uma ordem social seguindo o projeto de uma sociedade perfeita”. Analisando suas palavras, uma sociedade concebida como modelo cientificamente elaborado, ou imaginada como uma obra de arte que suprime tudo aquilo que não se adequa à sua racionalidade, ou que interfere na sua beleza, na aspiração de melhorar a humanidade, ou de aprimorar a condição humana, é a motivação mais íntima do genocídio moderno.

A política como ação científica e técnica, como execução artística, como jardinagem ou como medicina, articula metáforas tomadas de todas estas atividades. Uma sociedade autoconfiante de racionalidade total; exige isolar os elementos úteis destinados a viver e prosperar, dos elementos nocivos e patológicos, que devem ser suprimidos e retirados em favor da saúde, da beleza e da razão. Citando Bauman: “Extirpar e preservar são [dois] polos em torno dos quais gira a política racial… A linguagem e a retórica de Hitler estavam repletas de imagens com doenças, infecções, putrefação, pestilência, etc”. As obsessões da civilização moderna pela higiene e pela limpeza, como também pela ética da saúde, foram mobilizadas na hora de representar o Judaísmo. O Judaísmo no Terceiro Reich era visto como uma doença incurável, contagiosa, e os judeus são parasitas e portadores de bactérias e bacilos.

Divisão do trabalho e ética

Quando se desconsidera a ética da finalidade, é possível instrumentalizar a segregação social com eficiência e com baixos custos. “Esta dissociação – explica Bauman – é resultado de dois processos solidários entre si: uma minuciosa divisão do trabalho e a substituição da responsabilidade moral pela responsabilidade técnica”.

Segundo palavras do pensador e filósofo Karl Marx (1818 – 1883), a divisão do trabalho tem a “alienação” como sua característica essencial. Dita alienação gera uma distância entre aqueles que participam coletivamente em dito trabalho e o produto acabado em si.  Um exemplo? Se uma pessoa foi indicada para dirigir uma locomotiva que transporta judeus ao “lager”, não é necessário que este motorista saiba o destino final da “carga”, pois uma vez concluída a tarefa pela qual é responsável (chegando a tempo no destino e vencendo eventuais dificuldades de percurso); deverá voltar e pegar outra carga; sem tomar consciência sequer de fazer parte de uma atividade geral da qual participou.

Numa visão funcionalista do Holocausto, o historiador norteamericano Christopher Browning descreveu a banalidade que cercou a invenção dos caminhões equipados com câmaras de gás, o instrumento que permitiu uma solução mais econômica e rápida para o assassinato em massa. Afirma Browning: “Especialistas cuja experiência profissional nada tinha a ver com o assassinato em massa, se achavam, de repente, fazendo parte de uma engrenagem de destruição. Operários escalados para proveer, transportar, manter e/ou reparar veículos (…), eram só perturbados pelas críticas direcionadas ao produto. Os defeitos dos caminhões tinham um reflexo negativo sobre sua capacidade profissional, sendo necessário achar uma solução definitiva. Informados dos problemas surgidos na prática, constantemente estes funcionários se empenhavam em criar engenhosas modificações técnicas que fizessem mais eficientes e aceitáveis seu produto (…). Sua maior preocupação era a possibilidade de serem julgados injustamente pela tarefa que lhes foi encomendada”.

Que aprendemos com a citação de Browning? Quanto maior a divisão do trabalho e, portanto maior número de pessoas envolvidas, menor a quantidade de interferências éticas que sofrerá uma engrenagem no qual os únicos “problemas” a serem percebidos por seus integrantes serão estritamente técnicos. Para Zygmunt Bauman “a responsabilidade técnica difere por completo da responsabilidade moral… Uma ação burocrática se converte num fim em sí mesmo quando somente pode ser realizado na base de critérios intrínsecos de adequação e sucesso”.   

Uma enorme distancia separa as operações específicas de suas trágicas consequências. Dita distancia esvazia as consequências de todo e qualquer conteúdo ético, de maneira que o único critério pelo qual podem ser julgadas é o critério de suficiência técnica. Na burocracia perfeita, “a moralidade fica reduzida a ser um bom trabalhador, eficiente, diligente, e experimentado”.

Sob o olhar minucioso da sociedade moderna, o Holocausto pode ser explicado também como uma verdadeira indústria de sucesso, principalmente pela funcionalidade, por tratar de manter uma economia eficiente, por optar pela eliminação do gasto inútil, pela obediência, perícia, precisão, minusciosidade, ordem, previsibilidade, produtividade, enfim diversos atributos que desvinculam suas ações de suas consequências éticas; uma vez que o objetivo global do seu funcionamento aparece inacessível aos funcionários contratados em suas funções, cuja única aspiração é serem eficazes (produtivos) em suas tarefas.

O perigo da indiferença moral – nos ensina Bauman – atinge seu ponto mais alto na sociedade moderna, totalmente burocratizada, tecnológica e industrializada. Nela a divisão do trabalho é cada vez mais especializada, vai crescendo vertiginosamente e determinando que a ação à distância fique cada vez mais eficaz.

A responsabilidade moral

Para Bauman, numa sociedade racionalizada, “o âmbito da interação influenciada pela moral passa a ser mínima, se comparada com a quantidade de ações sustraídas da sua interferência”. A forte experiência do Holocausto tem questionado a compreensão da moralidade, algo que na tradição sociológica origina-se no alcance da responsabilidade moral; introduzindo neste âmbito uma dimensão temporal, desprovista de toda ética. Este fenômeno se denomina “ética da presença”, a ideia de proximidade como condição da responsabilidade, algo apontado na razão da prática de Emanuel Kant.  Assim, se estive presente, sou responsável pelo acontecido. Mas existe também a “ética da sobrevivência” do profeta Jonas, que admite outra formulação: “atue de forma tal, para que os efeitos de seus atos não sejam incompatíveis com a vida futura dos homens sobre a terra”.

Para o célebre sociólogo Émile Durkheim (1858 – 1917), tido como um dos pilares da sociologia moderna; a moral é um produto social, um conjunto de valores e princípios vinculados e socialmente aceitos. Contrariamente, inmoral será toda desobediência a valores, regras e pautas de comportamento, previamente estabelecidos pelo conjunto social. A partir do Holocausto, afirma Bauman, a prática jurídica e a teoria moral devem incluir a possibilidade de que atuar moralmente é ter que atuar contra os princípios instituídos pelo consenso social.

Procurando achar o fator moral fora da ordem da sociedade, bem além do funcionamento das instituições sociais, Zygmunt Bauman nos remete ainda ao pensamento do filósofo judeu francês Emmanuel Levinas (1906 – 1995), para quiem a ética se consolida primeiramente como filosofia, enquanto a responsabilidade moral surge como uma estrutura primária e fundamental da subjetividade.

A interpelação do “outro” atravessa perpendicularmente a totalidade de meus interesses pessoais como criatura social, e, portanto, “as raízes da moral se afundam por debaixo das ordens sociais, por debaixo da cultura e por debaixo das estructuras de domínio. Quando os processos sociais começam, a estrutura da moral já existe. A moral não é um produto da sociedade, mas é algo que a sociedade manipula”.

Palavras finais

A principal lição do Holocausto, segundo Zygmunt Bauman, não é o fracasso da modernidade, deixando inconclusa sua promessa, sendo incapaz de neutralizar vestígios pré-modernos de desumanidade. A maior lição do Holocausto reside no fato de que a civilização moderna tem preenchido um rol ativo no desenrolar e na execução dessa tragédia judaica do século 20. Longe de uma atitude passiva, a experiência do Holocausto colocou em evidencia a facilidade com que a maioria dos indivíduos se importa exclusivamente com seus próprios interesses, observando comportamentos de autoconservação, mergulhando até sumir numa indiferença moral, atendendo de maneira estrita e obediente com o dever imposto, sem interrogar-se acerca do que faz.

Ao mesmo tempo, Bauman nos ensina que isto não é inevitável. Há como modificar situações. Para o pensador do mundo líquido, não importa quantas pessoas optaram pelo comportamento moral em detrimento da autoconservação. Basta apenas que um deles tenha feito esta escolha. O mal não é onipotente. O testemunho dos homens que tem resistido mexe com a lógica da autoconservação; mostrando em última instância, aquilo que ela é: uma eleição.

A sociedade que em 1930-1940 testemunhou o Holocausto é exatamente a mesma sociedade em que vivemos; e pouco ou nada foi alterado em relação à nossa autocompreensão coletiva. Para Bauman, a política continua sendo hoje um exercício de adoção e implementação de modelos, todos previamente orientados para uma racionalização total, para uma instrumentação de projetos de engenharia social, tais como a busca de novas técnicas e soluções para a existência humana e para a vida em comum. Em outras palavras, há hoje “problemas” a resolver, mas não há acontecimentos que precisem de um incansável exercício de compreensão.

Para Bauman a vida humana não tem solução já que não representa um problema, ela é no máximo um enigma. A vida nunca poderá ser reformulada cientificamente nem remodelada artisticamente. A vida humana não vai a nenhuma parte, ela sequer poderá ser explicitada em termos políticos.

A premissa fundamental de uma política que leve à risca as lições do Holocausto é que nunca soubemos, nem saberemos, para que serve o ser humano. Pode soar um tanto pessimista, mas a maioria dos seres humanos ignora o motivo pelo qual os homens estão neste mundo.

Bibliografia

Barbaridade e modernidade: um olhar sobre o holocausto. Ambito Jurídico. Revista 111. Sociologia. (01 de abril 2013). https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-111/barbaridade-e-modernidade-um-olhar-sobre-o-holocausto/

Bauman, Zygmunt, Modernidade e Holocausto. Ed. Zahar, Rio de Janeiro 1989.

Quintão de Almeida, Felipe, Bauman e Adorno: Sobre a posição do Holocausto em duas leituras da modernidade. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Educação, na área de concentração Educação, História e Política. Florianópolis 2007. https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/90303/244120.pdf?sequence=1&isAllowed=y

Rabinovitch, Gérard, Preocupa o teu próximo como a ti mesmo: notas críticas a modernidade e holocausto, de Zygmunt Bauman [Make your fellowman worry: as you yourself worry, critical notes on modernity and the Holocaust] by Zygmunt Bauman. Editora Ágora, Rio de Janeiro, 6 (2), Dezembro 2003. Ver: https://doi.org/10.1590/S1516-14982003000200008